Capítulo 1
“Desejar não é querer. Se deseja o que se sabe que não dura.
Se quer o que se sabe que é eterno.”
Rousseau
Os gritos de rebeldia marcavam em um compasso de marcha uma das avenidas mais importantes da capital paranaense. A multidão entulhada, apertada ao longo da Cândido de Abreu, margeando os carros estacionados, dirigia-se para frente da sede do Governo Estadual. O Palácio Iguaçu, no Centro Cívico de Curitiba assentava-se sobre o largo espaço de concreto da avenida e esperava silencioso o grupo de pouco mais de mil manifestantes. Cartazes em preto e vermelho, bandeiras brasileiras e paranaenses, faixas, bandanas, braçadeiras de luto, emergiam ao longe acompanhando aqueles que saíam às ruas. A passeata quebrara a rotina da cidade e deixara o fluxo de veículos em estado caótico. O rumo das pessoas trafegando nas perpendiculares e ruas principais do centro fora alterado desde cedo.
Mil e poucas vozes de um universo de mais de um milhão não atingia um índice significativo para aqueles que analisavam o protesto do lado de fora. Contudo, os líderes do movimento sabiam que, por trás de cada alma viva de Curitiba, havia cem outros, retraídos pelo medo da ação da polícia, pela pressão dos empregadores, pela acomodação resultante de anos de contínuo silêncio. Por trás de cada uma das pessoas erguendo bandeiras naquela parada havia outras tantas também descontentes, descrentes do sistema e ansiosas por mudanças e liberdade.
Os insatisfeitos abraçavam a causa de forma cautelosa, amparados por leis, afrontando sutilmente a ordem estabelecida. Do outro lado dos descontentes, a grande maioria dos juristas, certificavam o sumiço de tais leis do cenário nacional, esmagando-as através do apoio a decretos cada vez mais severos, sustentando a escravidão a todo custo.
Por trás dos poucos revoltosos, os abolicionistas radicais, segundo o sistema, planejam ampliar os ataques às companhias de preparação de escravos promovendo, segundo o governo, a desordem.
A data programada para o evento fora marcada de propósito. O 13 de Maio não denotava apenas a morte de Isabel Cristina Gonzaga de Bragança e Bourbon, Sua Majestade Imperial, Dona Isabel I, Imperatriz Constitucional e Defensora Perpétua do Brasil. Marcava o fim da esperança de liberdade para os negros vindos da África. Abalizava também a não assinatura da lei que libertaria para todo sempre os escravos naquele final de século XIX e garantia-lhes uma sobrevivência como homens livres. Leis anteriores haviam sido burladas e descartadas por escravocratas líderes republicanos.
A história brasileira, aquela tida como oficial, descrevia maio como um mês trágico para o povo, um tempo de pesar, de consternação, pela morte precoce da primeira senadora da república, embalada por uma doença tropical. Para os abolicionistas, camuflados ou não, marca a morte de uma mulher firme de propósito, cuja assinatura da lei determinaria o fim de uma época de crueldades para com os escravos, marca o fim das esperanças de uma justa distribuição de riqueza, da recompensa por terem sido arrancados de seu lar e forçados a encher de ouro os bolsos dos senhores de engenho, fazendeiros e pecuaristas luso-brasileiros.
Isabel, senhora de desejos de liberdade, desprezava as leis escravagistas pela brutalidade imposta aos negros. Na vida jamais possuiu um escravo sequer. Se estivesse em pleno século 21, sentiria asco da sociedade na qual o Brasil se transformara a custa da escravidão negra. Ela, que lutara para que os membros da Assembleia Geral do Poder Legislativo se conscientizassem sobre a abolição, arrancaria um grito de indignação e revolta na atual conjuntura brasileira e se recusaria a orgulhar-se da prosperidade do país.
Os revoltosos bradavam o nome de Isabel não por nada. A senhora iluminada, de ideias impregnadas de liberdade, era a heroína. Fazia a marcha intensa e determinada. Exaltavam outros importantes nomes igualmente. Imploravam por justiça e igualdade. Por uma relação mais próxima do Brasil com os países latino-americanos e europeus cujos sistemas de governo já não possuíam há séculos a escravidão como motor de progresso.
Movidos pelos ideais de liberdade de filósofos e escritores proibidos de serem lidos e comentados, avançavam e acolhiam os olhares, os gestos, as poucas e sussurradas palavras do povo observador e que, por medo de repressão do Estado, não se atrevia a dar um passo sequer contra a ordem vigente e vigilante.
A sociedade brasileira, acostumada à escravidão dos negros, há alguns poucos anos aceitara a escravidão imposta às minorias contrárias às leis cada vez mais rígidas e a religião dominantemente católica, mas à mercê da benevolência do Estado. Índios, ateus, homossexuais e praticantes de outras religiões e cultos viviam na obscuridade, aventurando-se nas relações, temendo serem descobertos e aprisionados sem qualquer oportunidade de defesa, torturados e mortos muitas vezes, esquecidos nas prisões especiais. Pessoas comuns, cujas vontades limitavam-se pelo fanatismo nacionalista, esqueciam-se da vontade própria. Descendentes de outras nações, mantinham-se à margem da cultura, da educação e não migrando para países vizinhos, conseguiam sobreviver com poucos recursos.
As leis, configuradas para sustentar o sistema escravocrata e toda a economia do país sustentavam-se através da perpetuação das famílias portuguesas ricas e seculares, pelo domínio da produção artística e cultural, pela censura e vigilância, ora explícita, ora camuflada. Além da ascendência portuguesa, alguns outros oriundos de outras nações beneficiaram-se com a ordem social existente. Alemães, poloneses, russos, sul-africanos e italianos estabelecidos em solo brasileiro há muito tempo recebiam a proteção do Estado e aceitavam livremente a estrutura político-social, muitas vezes agindo de forma contrária aos países de origem discordantes das políticas brasileiras de manutenção da escravatura.
Braços e peitos alinhados o grupo de manifestantes seguia tranquilo até a polícia militar organizar uma barreira, isolando a sede governamental estadual.
Escudos, coletes à prova de bala, capacetes com proteção frontal, joelheiras, botas e cassetetes haveriam de manter seguros os políticos, guardados no palácio, como se fossem tesouros nacionais.
Uma linha de policiais, armados com metralhadoras e fuzis, se posicionava atrás da primeira como um gesto não somente de defesa, mas de petulância e supremacia.
A multidão armava-se apenas com palavras de ordem e desejos de mudança. Desprovidos de qualquer tipo de arma, seguiam sem intenção de confronto. As armas impunham uma ação contrária e arbitrária. O grupo de manifestantes queria ser ouvido, desejava atenção. Reivindicavam uma voz há tempos muda, nas sessões parlamentares, apesar de ser base dos protestos em datas significativas não oficiais. Exigiam uma lei que o mundo civilizado já abraçava. Não lutavam por nada além de liberdade.
O repórter colocou-se à frente da multidão descrevendo o acontecimento.
— As comemorações de 13 de Maio iniciaram com protestos em quase todas as capitais do Brasil. Estamos aqui, na Cândido de Abreu, em frente à Prefeitura Municipal de Curitiba, muito próximos de manifestantes rumando para a frente do Palácio do Iguaçu. O Governador do Estado anunciou ação efetiva do grupo de operações especiais da polícia militar e o exército está em alerta. A ordem, segundo Moisés Alcântara, líder estudantil da Universidade Federal do Paraná e membro da União Estudantil Brasileira, redator do manifesto, quer a atenção da sociedade para as novas diretrizes do trabalho escravo que entram em vigor na próxima semana. Os manifestantes estão reivindicando o fim do regime de emprego para casta desproporcional ou, como diz termo popular, trabalho escravo. Ele pretende entregar o documento de repúdio à situação cada vez mais cruel dos negros amparado por um grupo de advogados, os entitulados abolicionistas.
— Meirelles… — a apresentadora o chamou. — Existe a possibilidade de confronto? O que tem de certo por aí?
— Acreditamos que não, Márcia. É uma data não-oficial, apesar de ter marcado a história de nosso país. A secretária de imprensa do governo, Isabel Vianna Linhares, ressaltou em uma entrevista coletiva pela manhã que as brigadas estudantis serão denunciadas se houver qualquer dano ao patrimônio público. — Caminhou para o lado, deixando a rua ser vista de outro ângulo. — Deixe-me chegar próximo do líder.
O operador da câmera moveu-se junto mostrando os rostos dos participantes, dando close em expressões e enfatizando olhares.
— Alcântara! Alcântara! — gritou, chamando o jovem seguidor da multidão. — Uma palavrinha! Um pronunciamento! — Tentava driblar o grupo. — Pode nos falar sobre a manifestação? — Forçou a aproximação. — Acredita ser possível sensibilizar a opinião pública? Essa é a segunda manifestação do ano…
— É insuportável que não tenhamos voz! — respondeu o estudante. — É insustentável essa arrogância do Governo Federal e dos representantes governamentais estaduais para a questão da escravidão. Somos o único país ocidental a sustentar a sociedade à custa de trabalho desumano. O mundo civilizado abomina a escravidão.
— Algumas nações africanas impõem ainda hoje ações muito mais desumanas aos cidadãos — o repórter interveio. — Alguns países ainda limitam a ação do povo. O próprio Zumbi, morto pelos bandeirantes, mostrava-se cruel com seus seguidores — alfinetou. — Também aprisionava nos quilombos os negros libertados das fazendas.
— Homens são livres, nascem livres. E histórias podem ser mal contadas — o líder rebateu. — Nossa condição humana advém da liberdade. Liberdade de ir e vir, de viver, de nascer ou morrer, de cultuar um Deus, mais de um, ou nenhum. Liberdade de estudar, amar, casar.
— A maioria dos cidadãos sente-se desconfortável com determinadas práticas de culto, de relacionamento e…
— Estão tão acostumados a aceitar determinadas coisas que não distinguem mais o que é gosto próprio e gosto imposto. — O líder dos manifestantes não o deixou prosseguir. — E vocês da imprensa são tendenciosos.
O repórter foi sendo empurrado para fora do grupo, parando na calçada, próxima do estacionamento, precisando dar passagem para os que se moviam ordenadamente.
— Então, Márcia. Ficaremos atentos aqui esperando essa manifestação ser pacífica. O Governador afirmou que não se levantará qualquer arma a menos que a ordem seja ameaçada.
— Muito bem, Meirelles. Nós seguimos aqui com as notícias do clima. — A bela e loira apresentadora sorriu para a câmera. — Valéria! — A câmera desviou para a esbelta mulher de pé, em frente do mapa eletrônico. — O que temos para essa sexta-feira?
— Boa tarde, Márcia — sorriu mecanicamente. — A sexta-feira começa com frio típico de outono.
O noticiário avançou desfazendo as expectativas com relação ao término da passeata. Chuvas no sul do Brasil com uma frente fria vinda da Argentina anunciadas. Tempo bom no norte e nordeste com chuvas no litoral abafando as reivindicações. Temperaturas elevadas no centro-oeste consumindo as preocupações referentes àquele 13 de maio..
As notícias do clima deram lugar às notícias esportivas. O campeonato brasileiro de futebol em sua glória e término arrecadaria os olhares de uma parcela mais do que significativa dentro do contexto nacional. O anúncio de novas contratações para a próxima temporada dos times da capital do estado e as notícias da Seleção Brasileira de Futebol, hexacampeã do mundo, cujo técnico terá liberdade para compor o time utilizando um percentual maior de escravos fariam a lembrança daquela data desaparecer com a imagem de treinos e entrevistas de jogadores de futebol.
— A notícia tomou a todos de surpresa — comentou Sérgio Castro. — A liberação de 15% a mais de laivosvai agora atingir um patamar de 80% do grupo de atletas. Segundo a assessoria de imprensa, o Governo almeja estender esse índice para os demais times brasileiros. A venda de jogadores entre os times dependerá do percentual de negros já pertencentes ao plantel. — Tomou fôlego e continuou. — As empresas patrocinadoras entendem esse índice como gerador de uma renda maior e uma participação mais efetiva nas campanhas esportivas.
— Pois é, Castro — o comentarista grisalho interviu. — Estamos em uma fase favorável e não podemos desperdiçar os talentos encontrados nos esportes. Afinal, a conquista da última copa, e o ouro olímpico no futebol, além de todas as medalhas trazidas, gerou uma credibilidade invejável em determinados setores econômicos. Eles precisavam ser reajustados — finalizou como sempre, apoiando os cotovelos na mesa e cruzando as mãos. — É com você, Márcia.
— Dornelles, o momento é propício, mas o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos foi reforçado hoje pela manhã. Os americanos voltaram a taxar a soja brasileira. Quem comenta a notícia é Pedro Franco.
— O embargo, mais um, Márcia, não tem tanta força quanto àquele ocorrido com a carne do Rio Grande do Sul. O Brasil, dessa vez encontrou parceiros na China, Rússia, Paquistão, Turquia e na Coréia do Norte, importadores da carne brasileira. Com a nova parceria, o Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Evaldo Borges, acredita que se possa competir e alavancar outros mercados. — Fez uma pausa e acrescentou: — Evaldo Borges também amenizou as palavras duras do colega Pedro Vilas-Boas, Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que criticou duramente a ação dos Estados Unidos, apoiados pela União Europeia, dizendo que o embargo só demonstra o total descaso e desconhecimento dos mecanismos de mercado e relações internacionais, bem como a imposição arrogante da economia americana sobre a América Latina. — Ajeitou-se na cadeira. — De qualquer maneira, Márcia, é salutar lembrar: toda a ação corresponde a uma reação.
— O que está querendo dizer com isso, Dornelles?
— O último embargo dos Estados Unidos, Márcia, apoiados pela União Europeia foi contra a Rússia, que rebateu o embargo importando frutas e carne de porco do Brasil, da Ásia e da África do Sul. A Europa atolou-se em frutas e a economia teve uma queda brusca. Foi uma ação inconsequente, assim como essa está sendo. Apesar de países como a Bélgica, Holanda, Canadá, França, Suécia, Noruega, Dinamarca terem se manifestado contra a participação do Brasil na Liga Mundial, outros países manifestaram-se a favor. A argumentação mais forte veio pela economia crescente brasileira e taxas de importações e exportações aquecendo o mercado internacional, gerando renovação de setores como o fabril e o esportivo. Assim como a China, a oferta de produtos brasileiros industrializados extremamente baratos acende a economia de outros países.
— Verdade, Dornelles. O Brasil, com a força de trabalho escrava, já supera a China, possuidora mão de obra barata. Querendo ou não, o mundo depende hoje desses produtos e o Brasil estabeleceu-se há tempo como uma potência econômica. A competitividade já é marca brasileira.
A apresentadora concordou discretamente no balançar da cabeça. Prosseguiu falando de artistas, de música e amenidades. Terminou o noticiário com um sorriso extremamente branco.
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