Capítulo 1
Com o sol a pino, a fome apertava. Devia ter dado ouvidos à senhora Janice, a dona do armazém. Comer antes de uma distância daquelas era uma questão de sobrevivência, porém a pressa de chegar se fazia tão mais pungente que meu estômago ficou em segundo plano, não me importando em seguir com a mesma obstinação. Só me importava vencer a lonjura até a casa de Vicente Morelli.
Durante os dez ou doze primeiros quilômetros, não encontrei viva alma e o sol castigava meus olhos. Trilhava devagar porque não seria nada bom entrar numa estrada errada.
O homem que parou para dar-me informações seguia em sentido contrário e não mostrou muita simpatia.
— Por favor! Senhor! – gritei, depois de parar a moto e tirar o capacete.
Cheguei a rezar um ‘por favor, pare’ quase implorando porque o sujeito não demonstrava apreciar uma prosa, como diria vovó. De feições sérias, me olhava do mesmo jeito.
— Sabe onde fica a casa de Vicente Morelli?
Aquelas estradas de terra engoliriam os caminhantes que, desavisados, embrenhavam-se daquele jeito. O homem ficou me encarando. A questão era simples. Um sim ou um não. Se respondesse, uma nova pergunta se formaria em minha boca tagarela. Aliviou-me da angustia, respondendo em seguida, com uma explicação completa.
— Tem que seguir essa estrada até encontrar a capela. Depois a via estreita e se divide. Você pega a estrada da esquerda. Até o fim.
Ele se virou para apontar o caminho, enquanto o obediente animal, não moveu um músculo sequer.
— Obrigado – respondi colocando o capacete. Não ouvi nada em retorno e segui adiante. Pelo retrovisor, pude vê-lo até o perder de vista na primeira curva mais acentuada.
Uma história assim marcaria pontos ao meu favor no quesito ‘fazer amigos rirem e pensarem na grandiosidade de uma bela mentira’. Eram assim mesmo, Pedro e Cláudio, que diziam que as lorotas que eu contava eram dignas de troféus. Entretanto, nenhuma história pode ser considerada comum quando vivida de forma intensa.
Histórias comuns não existem porque nenhuma, de verdade, pode ser assim considerada. Contar uma história não é senão contar um pedaço de nós, já que as palavras vão vivificando os fatos, em especial se nós fizemos parte total ou parcialmente deles.
E esta história nada tinha de banal. “Claro que não!”, exclamei em pensamento, indignado, olhando ao redor, enquanto a paisagem que fugia parecia não mudar, contrariando com veemência de meu pensar. Aquele mato todo parecia estar sempre passando outra vez pela minha linha de visão.
“Mas é claro que não é uma história qualquer, Israel.”
Avistei a dita da capela surgindo por entre as árvores, tímida e humilde.
Pulsava em mim a certeza de que nada do que viveria daquele dia em diante seria comum. Nada, em nenhum aspecto. A começar pelo lugarejo minúsculo pelo qual parei para pedir informações. E agora, estava ali, diante de uma capela de pedra, com um salão modesto construído ao lado esquerdo e um campanário cujo musgo na base fazia alusão a uma umidade temporal secular.
Encontrava-me no fim do mundo, ou quase. “Com toda certeza, o lugar mais frequentado no final de semana.”
Teria que voltar para registrar tudo. Fotografar e fazer minhas anotações. Minha pretensão não fugia a de todos. A ideia de tornar-me escritor, além de fotógrafo, embriagava minhas madrugadas, sentado em frente à máquina de datilografia, em uma escrivaninha que pertencera a meu avô, o Capitão Resende. Não poder parar para explorar o lugar me angustiava, mas era preciso seguir adiante.
Se o caminho para ‘as profundezas’ existisse, teria aquela inclinação, fechado a uns cinco metros de altura pela copa de árvores de folhas escuras, com cipós pendendo até a base e as pedras soltas fazendo tudo ficar pior. Aquela estrada me conduziria até os portões de Hades.
No trecho final, a solução seria segurar minha moto se quisesse poupar gasolina, porque se precisasse subir toda aquela distância, teria que fazê-lo em primeira marcha, segundo a dona do pequeno comércio. Alertou-me sobre o que eu enfrentaria. Se a tivesse ouvido e parado para comer qualquer coisa no restaurante do pequeno hotel da avenida principal e quase única, uma hora atrás, não estaria ali, diante do trecho final de minha jornada.
Descia um abismo do cão. Guiando a moto porque, além de querer salvar o combustível, sentira medo de descer sobre ela. As pernas tremeram e aquele caminho estreito pedia respeito. Amarrei firme o capacete no elástico do assento, ajeitei a mochila nas costas e encarei o trajeto.
— Se esse não é o caminho para Hades, com certeza, me leva bem perto dele.
Sorri porque fiquei maravilhado com o som da minha voz naquela quietude.
Era quase passagem para um. Impossível considerá-la via de duas mãos.
Ouvia cada pedra esmagada pelas rodas da moto e por meus pés. E se parava, ouvia o canto de pássaros muito distantes. Ali começaria minha história.