Amazônia do Norte, Território BR, Ano 58 do 3º Milênio
— Pai… Diz o nome do lago de novo?
— Iacy Uaruá.
— Espelho da Lua…
— Isso, filha. Espelho da Lua.
— Eu estava mesmo perto do lago, na floresta?
— Uh-hum… Eu a resgatei de lá. Carreguei você comigo até a zona humana ocupada, próximo do Território BR-NE.
— E minha mãe?
— Não havia ninguém.
— Como conseguiu atravessar os territórios alagados?
— Você estava comigo e acho que a pedra ajudou.
— Por que é um amuleto?
— Uh-hum.
— Muiraquitã…
— Sim. Muiraquitã, filha.
— O vô disse que só as icamiabas fazem esse tipo de amuleto. É por isso que tenho esse tom de pele diferente? Sou uma icamiaba?
— Você é linda. E seu avô? É um contador de história.
— Minha mãe morava na Grande Reserva?
— Talvez. Não sei. Como eu disse, não tinha ninguém com você.
— Mas como é que me achou, pai?
— Encontrei você na floresta, perto do Espelho da Lua. Foi lá. Agora pare de perguntar.
Zoe venceu a longa distância pelo sul, levada pelo vento pampeiro minuano e cruzando as dunas de areia que cobriam a zona nordeste da divisão das terras sulinas. Depois, sobrevoou os pântanos, e cruzou os brejos e lodaçais através das passagens abertas na rota de voo até chegar a oeste das Novas Campinas, de onde o horizonte se abria.
Quilômetros além, o motociclo voador trafegou com certa lentidão, desviando da mata ciliar de alguns metros abaixo, passando entre as árvores maiores da Grande Reserva 1 – uma mescla de território preservado nativo com árvores transgênicas para repor oxigênio desde a queda das cidades do norte e do sul, daquela região americana quente e úmida.
— O Cap. Vítor caiu nessa área enquanto apurava a movimentação indicada pelo satélite. A última comunicação partiu daqui. — O operador apontou para o holograma.
— O que acha que houve, JP?
— Não há qualquer possibilidade de haver pulso eletromagnético, então…
— Estive vendo os registros. Esse não é o primeiro piloto a cair nessa área.
— Você se refere ao incidente do seu pai?
— Também, mas tem cinco registros entre o do meu pai e esse.
— Seu pai disse que foi falha no equipamento.
— Eu sei, mas não se tem ideia, não é mesmo? É algum tipo de energia?
— Não posso afirmar. Teria que ver os registros dos equipamentos. Os pilotos não voltaram e não houve tentativa de resgate, Zoe. Só estão averiguando porque o novo satélite apontou pontos de calor diferentes. Além do mais, não organizaram essa missão como missão de resgate. Eles não estão interessados em Vítor.
— Eu estou. E você vai me ajudar.
— Sim, senhora, Tenente.
O navegador eletrônico construía um caminho seguro até o ponto marcado. As informações do Comando Central chegavam de hora em hora. Havia registros de movimentação na área noroeste da reserva. O novo satélite historiava, mas não identificava com precisão onde havia, de fato, presença humana. Dentro das áreas preservadas, isso implicava em possível degradação e contaminação. Ninguém estava autorizado a invadir os santuários de vida animal e vegetal.
Terceira força de sustentabilidade do planeta, a Grande Reserva, conseguira recompor a vegetação primeira com muito custo depois do colapso civilizatório mundial do final do século XXI. Junto com a flora, a fauna também se restabeleceu ajudada por biólogos e cientistas sobreviventes. A incorporação de árvores nativas geneticamente modificadas acelerou a regeneração da terra e tornou a atmosfera respirável. As cidades restantes emergiram do caos junto de uma nova consciência ocupacional. A contenção da natalidade e a execução em massa eliminaram de forma drástica mais de 30% da população e uma seleção baseada em habilidades e capacidades intelectuais serviu de base para o início de uma nova era.
Como parte da Elite Guardiã, era encarregada de estabilizar movimentações humanas de área ou dissipar quaisquer problemas de desequilíbrio dentro das fronteiras das Reservas. Havia um controle muito rígido para que a fauna e a flora se mantivessem de forma harmônica e provessem não somente oxigênio, mas um equilíbrio vital para o planeta. Próximo às reservas os campos se refaziam, assim como a agricultura e a pecuária.
— Se seu pai fosse vivo, Zoe, estaria orgulhoso. Você se tornou uma Guardiã. Quando ele recebeu essa insígnia, ele tinha um ano a menos que você.
— Eu sei.
— Lembro muito bem…
— Pode me contar sobre a queda na floresta, vô?
— Pfff… Não tem muito o que contar, Zoe.
— Quem o encontrou?
— Ele encontrou o caminho sozinho.
— Como? A reserva é enorme!
— Muitos afirmam que foi milagre. Eu acho que você o salvou.
— Sei. Por causa do amuleto.
— Isso… O amuleto… Esse amuleto é mágico, sabe? Seu pai nunca revelou, jamais contou a história toda, aquele bastardo! Mas ele deve tê-lo recebido de uma das mulheres do lago. Elas aprisionam os homens para procriar. Você sabe o que dizem as lendas?
O motociclo carregava o necessário: monitor de comunicação, uma arma laser simples, água potável e uma carga muito grande de memórias e informações sobre a floresta nos cartões prateados do pequeno computador manual. Vestia um traje especial, cujo tecido adaptava-se ao ambiente, protegendo-a da temperatura externa e de picadas ou mordidas de animais. A tecnologia favorecia viagens individuais de grandes distâncias nos motociclos.
Não poderia desconsiderar sua atual posição. Aproveitara-se dela perante o Grupamento e de seu histórico pessoal para ser designada para aquela missão. As ordens eram claras. Porém, seu histórico vital a fazia se lembrar do pai, um piloto de testes, bom conhecedor da reserva, pois já caíra com a aeronave no interior daquele verde e sobrevivera por milagre. Das informações que tinha sobre o acidente passado, pouco sabia além do que o próprio pai contara.
À medida que se aproximava das coordenadas da área de queda da aeronave militar, a floresta tornava-se mais densa e escura.
Os sons silvestres foram ouvidos quando Zoe desligou o pequeno motor de duas válvulas de combustível autorrenovável.
O cheiro característico de mato úmido misturava-se aos aromas de mel, de alguns exemplares de flores – canaranas, lírios, orquídeas, bromélias, trílios, flores catalogadas e de conhecimento dos Guardiões, que Zoe distinguia com perfeição.
— Dizem que o lago não existe.
— Ele existe, Zoe.
— Mas não há registros senão nas lendas antigas, pai, e aqueles pedaços de papel tipografados…
— Ele existe! Sou a prova.
— Como sabe o nome do lago? Você sempre diz que o vô inventa histórias….
— Eu não inventei, filha.
— Então, as mulheres existem?
— Não! Claro que não.
Largou o motociclo, retirou o capacete e decidiu seguir a pé, levando consigo o comunicador, o navegador portátil, a água e o pouco de suprimento. A missão não poderia tomar mais do que três dias. Não percebeu qualquer pulso eletromagnético ou alteração nos próprios instrumentos. Retomou os mapas feitos pelo amigo. Se tivesse sorte, encontraria Vítor, mesmo que as ordens não envolvessem um resgate.
No ponto de parada, o céu ainda era visível. As copas fartas das árvores o fechavam bem pouco, embora densas e muito altas. Árvores frondosas rematavam a linha de observação. A mata rasteira era algo mais complicado de vencer. Alguns desníveis e arbustos maiores emperravam a caminhada.
Trezentos metros de onde estacionou, Zoe encontrou o primeiro indício da aeronave militar: parte do revestimento da fuselagem. A procura não foi em vão. Outras partes surgiram em meio às mosteras, debaixo das samambaias e bromélias, e, não passos adiante, atrás de parte de uma árvore caída. Verificou o perímetro. Encontrou grande parte do GCATip – 49, mas nenhum sinal de Vítor. Os leitores que carregava copiaram o relatório de exercício através das análises da parte do painel que não tinha se danificado. Tudo o que faria a partir daquele momento era correr atrás dele, torcendo para que ele estivesse bem e vivo.
— Não deve ser nada, mas não podemos deixar passar.
— Por que não fiquei sabendo dessa ordem?
— Talvez porque não estava presente na inspeção do Capitão Gouveia.
— Tenha cuidado, Vítor.
— Terei.
— Prometa.
— Tudo o que mais quero é voltar para a segurança dos seus braços.
— Pare de rir. Eu não estou brincando. Quero que prometa.
— Eu prometo ter cuidado.
A mata fechou depois de meia hora caminhando. O terreno inclinava em vinte graus, algo comum para a topografia da reserva e o que se sabia dela. Estava indo em direção ao rio. Aquela floresta era de terra firme com espécies dominantes e mudaria quando atingisse a caatinga amazônica, onde a possível presença de grupamento humano fora registrada.
A noite caiu depressa. Próxima a uma Dinizia excelsa majestosa, de tronco com casca grossa, ajeitou o saco de dormir e fez da mochila, travesseiro. O conforto da cama de seu pequeno alojamento perdia para o ar que respirava, ali, no meio da selva, para o perfume das flores e para os sons peculiares daquele paraíso.
Acordou com a música distante, mas audível e em volume crescente. A primeira voz, solitária, aguda e firme. A segunda voz, talvez um grupo de três ou quatro cantores, assim como a terceira, entoava outro variação do canto solo, em total harmonia.
Juntou suas coisas e seguiu, guiando-se pela música e pela pouquíssima claridade que a abertura nas copas das árvores proporcionava. A lanterna pequena e de pouca potência, ajudava a iluminar a trilha.
Pontos pequenos de luz surgiram distantes. Ela se esgueirou através das folhagens e se aproximou. O lago refletia as estrelas do céu e a luz cheia, e os luzeiros em terra firme eram pequenas tochas acesas.
O grupo que avistou era de mulheres; cantavam e dançavam à margem do lago, longe de uma fogueira maior. Retirou de dentro da mochila o navegador e o binóculo. Não havia registro de lago naquela área.
— Iacy Uaruá…
As lembranças do pai e do avô tomaram-na de assalto. As teorias de seu nascimento vinham à tona, assim como as histórias que ouvira. Puxou para fora do uniforme o cordão com a pedra verde. Ela ganhava um brilho incomum. Sentia como se carregasse a floresta inteira.
Arrastou-se para o outro lado. Bem mais próxima, ganhou uma vista mais ampla. Reconheceu Vítor, preso a um tronco, junto de outros três homens – provavelmente agricultores dos novos campos – igualmente amarrados por cipós. De pele branca, Vítor destoava dos demais naquele claro de lua. Apurou o olhar e percebeu as inscrições no tronco – desenhos cujos significados, para ela, eram irreconhecíveis.
As mulheres ao redor da fogueira eram altas e fortes. Conduziam o canto empunhando lanças de madeira e pequenas adagas cujo material Zoe não identificava. O grupo feminino perto do lago era bastante jovem. Unidas pelas mãos, elas recitavam uma espécie de mantra, enquanto o canto das outras silenciava. Voltadas para a água, mirando a lua, mantinham as mãos erguidas.
Zoe pensou em usar a arma laser, dispersando o grupo, mas ponderou o perigo. Vítor poderia sair machucado, estando preso e indefeso. Considerou seguro dar a volta e ficar mais próxima. Precisava libertá-lo. Depois do ritual de acasalamento, as guerreiras sumiam na mata. Seu avô sempre enfatizava a parte na qual os homens eram levados com elas em regime de escravidão e soltos somente depois de nove luas completas, se sobrevivessem. Assim acontecera com seu pai, ela tinha certeza.
As figuras femininas se alternavam com as pequenas tochas. Zoe observava com atenção a fisionomia das índias. Uma delas poderia ser sua mãe. Buscava reconhecer traços, qualquer distinta semelhança com alguma das mulheres, mas não relacionava as linhas. Todas carregavam traços parecidos, cabelos longos e lisos, corpo esbelto e forte. Tampouco se soubesse a língua, saberia com qual delas, ou com quais delas o pai havia se relacionado. Uma história de vinte anos perdida na selva e na memória de um homem morto.
Quando o mantra das índias mais jovens terminou, as mulheres rodearam os cativos, separando-se em grupos de número mais ou menos igual. Algumas os seguravam e ameaçavam com lanças enquanto, outras, os despiam. Zoe viu o pavor no rosto de Vítor.
O grupo das mais velhas reiniciou o canto. A suavidade das vozes encantava. Segurando as tochas seguiram para o lago, onde rodearam o grupo das mais novas. Depois que a música cessou, as mais novas entraram no lago e recitaram palavras em uma língua estranha. Zoe não entendia de rituais, mas aquilo pareceu a oportunidade perfeita para soltar Vítor e os outros.
Enquanto se esgueirava para junto dos prisioneiros, Zoe não tirava os olhos do grupo de jovens. Aquele poderia ser o ritual das futuras mães do grupo. Um cerimonial de purificação, como contava o avô.
Próxima dos homens, usou a arma contra a guerreira que mantinha vigilância, aparando-a na queda. Pediu silêncio. Vítor se encolheu. Olhou-a atônito. Os outros se agitaram, colocando-se mais próximos.
— Mantenham-se quietos — advertiu.
— Como me encontrou? — Vítor a olhava descrente.
— Pura sorte, acho.
Para cortar os cipós que envolviam pés e mãos, Zoe precisou de força. Enquanto cortava, recomendava saírem sem fazer barulho. Vítor foi o primeiro a recolher sua roupa e juntar a lança da icamiaba, saindo sem olhar para trás, vestindo a calça e escondendo-se nas folhagens até os outros também estarem lá.
— Rápido!
O grupo embrenhou-se na mata. Mesmo com pouca iluminação, os homens correram descalços, desajeitados, guiando-se pela lanterna de Zoe. Lado a lado, os Guardiões não sentiam dificuldades. Eram treinados diariamente para vencer obstáculos. Não muito longe da clareira, um grito estridente cortou o ar e outros, de igual força, o seguiram. As icamiabas haviam detectado a fuga.
Zoe olhou para trás. Avistou apenas um dos três sujeitos.
Ao chegarem próximos do motociclo, um grupo de mulheres os alcançou. A luta foi inevitável. Viram o companheiro ser arrastado aos gritos para longe. Vítor atingiu a primeira guerreira com a lança e conseguiu desvencilhar-se da outra acertando-a no peito. Mais próximo do motociclo, ele acionou o campo de força. Quem se aproximasse, não conseguiria ultrapassar a barreira que os circundava.
Apesar de rápida, Zoe não conseguiu abater o grupo de três com a arma laser. Apenas uma foi atingida. A seguir, foi derrubada e, com a queda, a arma foi parar longe. Habilidosa, acertou a da direita com golpes marciais aprendidos na Escola da Academia. Vítor derrubou a segunda oponente, deixando-a inconsciente. Reparou no ferimento em seu peito feito pela adaga da icamiaba.
Zoe tombou com a última mulher guerreira e o amuleto saltou de dentro do uniforme. A indígena parou de lutar, afastando-se de Zoe, assombrada. Os amuletos brilhavam, iluminando o espaço com uma luz verde difusa. Encaravam-se. Possuíam muiraquitãs idênticos.
Vítor ergueu-se com dificuldade, segurando o rasgo do peito com a mão. Aproximou-se de Zoe e a tirou daquele estado hipnótico.
A índia sequer moveu-se. Permaneceu parada, enquanto Zoe carregava Vitor, ajeitando-o no motociclo. Ao desativar o campo de força e ligar o veículo, iluminando o entorno, viu a icamiaba segurar o muiraquitã, ainda assombrada, erguendo-se devagar e parando, imóvel, observando-os sair.
Zoe partiu rumo ao sul, deixando a floresta densa para trás. Vítor segurava-se a ela. Ao cruzarem o planalto, o dia já despontava. No horizonte, as primeiras cores claras já se apoderavam do céu. Quando chegassem à Base tudo ficaria bem. A preocupação maior era em relatar toda aquela ação.
Enquanto seguia, com Vítor grudado às costas, Zoe divagou sobre seu pai, sobre os motivos de não contar a verdade. Talvez ele as estivesse protegendo. Talvez as icamiabas precisassem continuar desconhecidas.
Colocou o motociclo no automático. Segurou o muiraquitã apertado. Em algum lugar da Grande Reserva existia uma tribo de mulheres guerreiras, cuja ligação com a natureza era mágica, e cuja existência, até então, resumia-se em uma lenda esquecida por todos.
Notas:
Dicionário – https://www.passeidireto.com/arquivo/21000445/dicionario-tupi-guarani
Fontes de pesquisa – http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Icamiabas
http://noamazonaseassim.com.br/a-lenda-do-muiraquita/
http://www.orm.com.br/tvliberal/revistas/npara/edicao4/lendas/muira.htm