O sujeito tinha “aparecido” na cidade.
Descalço e maltrapilho carregava consigo uma vara de madeira retorcida. Mal cheiroso e barbudo percorrera as poucas ruelas entoando orações e cânticos. Apiedados do homem, os moradores lhe alimentaram e acolheram. Suas palavras eram sábias e seu olhar complacente. Contudo, depois de dois ou três dias circulando, fora interpelado pelo padre que, desconfiado e, acima disso, enciumado, não aceitou as prédicas do homem e sugeriu que ele deixasse a vila.
— Tome rumo! Junte as doações e vá!
Assim foi ordenado e não cumprido.
Na tarde seguinte, o andarilho desafiou o padre da única igreja construída. Desafiou-o com a palavra do Senhor. O avermelhado da pele da face do desconhecido acentuava-se aos poucos. E todos da pequena Vila dos Prantos queriam saber como aquela pendenga terminaria. Estavam curiosos e não era para menos.
— Eu sou os olhos do cego e a cegueira da visão – ergueu as mãos e quando o padre Josias apareceu à porta da igreja, vestindo a batina negra cheia de botões, o povo emudeceu de vez e ele gritou – Sua cegueira é maior!
O semblante do padre era um misto de raiva e melindre.
— Vá embora! – Desceu os poucos degraus e cruzou a rua com passadas firmes ordenando prepotente – Por que veio aqui iludir o povo?
— Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar. Deus disse: Eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar! Não é possível viver na ignorância. Não é possível esperar que tudo desça do céu como um milagre.
O menino inocente aplaudiu, lembrando-se de Raul Seixas, e sua mãe lhe puxou o braço, sacudindo-lhe o corpo, olhando-o com raiva.
Os sussurros aumentaram aos poucos.
— Não há lugar aqui para falsos profetas.
— Nem para descrentes de Deus – o homem o afrontou. — Eu sou, eu fui, eu vou!
— Não há verdade nas suas palavras. Você não é Deus! E digo mais, o demônio se mostra de várias formas.
— Deus está nas minhas palavras – disse de forma firme. — No início, no fim e no meio! — E bateu três vezes a vara no chão.
Do céu, encoberto, veio o estrondo. Todos olharam para o alto e, pouco depois, outro raio caiu próximo do campanário, ressoando o sino. As grossas gotas de chuva começaram a estampar o chão de terra batida. O pó ergueu-se. Rapidamente, a água desceu com volume e barulhenta.
O povo correu.
O padre correu.
Depois da chuva, olhos atentos surgiram por entre janelas e portas a se abrir tímidas.
O padre Josias retornou à praça, à procura do andarilho, numa busca vã. Seus fiéis compareceram aos poucos. O céu ainda estava encoberto, mas a chuva tinha se dissipado.
O padre olhou para a igreja. Era hora de preparar a missa e o sermão.
Tudo estava no seu devido lugar.
~~~~~~~~~ 26/09/2013
Desafio de escrita – Construir uma história em cima de uma música.
Referência: Guita, de Raul Seixas.