Daphnis costumava banhar-se e passar as tardes perto do córrego de águas límpidas e tranquilas. A deidade, vinda detrás dos enormes rochedos e arbustos, próximo das fileiras de pinheiros a ladear o lugar, parou de forma tranquila a observá-lo.
O moço sobressaltou-se.
— Tu és novo por aqui. Não te reconheço.
— E-estás enganado — respondeu titubeante o pastor. — Venho aqui todo o verão, fugindo das colinas, em busca da sombra. Sou Daphnis. E tu, quem és?
— Por acaso não reconheces uma divindade quando ela aparece?
A criatura o cercou saltitante, a assoprar a siringe. O flerte foi recíproco. Assim, deixou-se cativar e passou a sofrer desse mal. Ao aproximar-se da divindade as pernas tremiam. Um calor envolvente subia pelo corpo desde a ponta dos pés e a voz vibrava. As maçãs do rosto, de tons delicados, avermelhavam como tomates maduros.
— Bebe! — Destampou e estendeu o cantil. — Bebida dos deuses!
— Estas a flertar comigo?
— Não queres? — perguntou o desconhecido.
Longas tardes de estio ao som doce dos tubos do pequeno instrumento moldavam a vida do casal a esperar pelos ventos propícios do outono trazendo os frutos da estação.
— Vais ensinar-me a tocar a siringe?
— Isso, e muito mais.
Apesar das palpitações, no tempo que seguiu, Daphnis foi acometido de ciúme doentio. Ele, cujo nome significava ‘cego para sua infidelidade’ enxergava mais do que queria.
— Sou-te fiel.
— Mentes com a mesma facilidade que tocas essa flauta — A fidelidade unilateral gritava: seu grande amor meio-humano não respeitava limites. — Não consegues manter teu desejo quieto por entre as patas.
— És o primeiro e único.
— Estás a mentir sobre Syrinx e sobre Pítis? Negas amar Selene? Eu te vejo deitar-se ao riacho, acariciá-la no reflexo e, ela, a brilhar ainda mais após os carinhos.
— Juro-te amor, e o que fazes? Julga-me de forma inconsistente.
Do envolvimento amoroso para acaloradas discussões diárias não levou mais do que algumas luas.
Ao buscar a magia, Daphnis encontrou a paz. Se não o pudesse ter só para si, tampouco ela o teria. Haveria de tirar um chifre, porque assim, matando a vaidade e o símbolo de sua macheza, o deus seria incapaz de sentir-se completo. Misturou as ervas. Destilou com a bebida. Invocou as forças contrárias e estava feito. Guardou o líquido no cantil.
Horas depois de uma noite iluminada, de cantoria e falso vinho, o desesperado pastor viu o amante sucumbir nas margens do regato, a chamar pelo nome dos dois.
Executou o plano sem piedade. Arrancou um dos cornos e correu da floresta. Mal tocava os pés no chão. O medo mordiscava os calcanhares. Naquela altura, não bastava ser inteligente. Esperteza e agilidade eram atributos essenciais.
Trancou-se na humilde morada, enrolando o artefato em uma manta, enfiando-o dentro de uma bolsa de algodão junto de outros pertences. Seguiria viagem ainda naquela madrugada, ingênuo de não poder ser alcançado pelo deus dos bosques e dos rebanhos.
Foi quando a porta escancarou-se e a criatura, meio homem, meio bode, dois passos à frente, berrou:
— Devolva meu chifre!
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Desafio de imagem.