No xamanismo malaio pré-islâmico, a porta de entrada para outras dimensões é através de uma viagem interna, através de uma escada em espiral do cordão umbilical etéreo que nos reconecta com nossa experiência pré-natal de união com a Mãe. Ao ultrapassar o ponto de nossa própria concepção, rompemos os véus do tempo e do espaço e recuperamos a consciência cósmica.
Setembro de 2013. Tempo atual.
Foster sentou-se maravilhada diante da torre.
24.887870°N e 74.645157°E. As coordenadas estavam certíssimas.
O entorno era uma sucessão de colunas dispostas lado a lado, ricamente adornadas com rendilhados esculpidos, que se elevavam a uma altura espetacular em uma base quadrada. Era possível, mesmo de fora, ver parte do interior e, esse, no entanto, parecia, sim, circular a olhos desatentos. Seus amigos descreveram com perfeição o monumento.
Seis meses antes.
À medida que Green subia e tocava nas pedras, o brilho intensificava-se e a criatura, surgida ao pé da escada, começava a tomar forma.
Ele não entendia as palavras a ecoar nas paredes, mas estava certo de algo: precisava ser rápido.
O receio do desconhecido não o desviava do objetivo. Anotava cada inscrição encontrada nas pedras da escadaria. Símbolos muito antigos, pelo que entendia. Pensava em Foster. A amiga antropóloga, PhD em linguagens antigas, seria capaz de decifrar aqueles escritos. Por isso, também fotografava tudo o que via, enviando em tempo real as imagens para Foster analisar.
A fenda em forma de olho felino verde azulado, no último patamar, expandia-se e se contraía. As paredes da torre se dissolveram. A energia emanada se propagava em ondas sutis de calor.
O suor escorria pelo rosto, e o medo rondava sua respiração, porém, desconsiderava qualquer retrocesso. Suas pesquisas tinham se estatelado diante daquela constatação. Havia mesmo um portal interdimensional relacionando universos. A lenda não era apenas uma lenda.
Olhou para trás. O vulto cresceu e ele não teve escolha. Escreveu os últimos apontamentos, registrou os últimos signos vistos. Guardou o bloco de anotações dentro de sua pasta de couro, deixou o celular no canto de um dos degraus para que as mensagens pudessem ser enviadas e mergulhou na fenda.
Ano de 1193 d.C.
Na vastidão da província de Rajasthan, não muito longe do rio Berac, sobre o pequeno platô, Mahara e Kabir observavam o horizonte escuro. Acima de suas cabeças o Caminho de Leite estendido, brilhando intensamente.
Estavam há muitos quilômetros distantes da universidade, mas tinham esperança da vinda dos amigos.
Atrás deles, um rasgo no espaço iluminava o entorno.
A fenda se sustentava na escuridão do descampado, ganhando em intensidade das estrelas do céu. Muitos já haviam transposto a abertura.
Muni e Gauri aproximaram-se pelo sul.
— Somos os últimos, Kabir. Estamos prontos — disse Muni, ainda ofegante.
— Estamos esperando pelos arquitetos. Eles vêm de Bihar, de Nalanda — explicou Mahara.
— Eles já deveriam estar aqui – reclamou Kabir.
Uma onda intensa de calor prolongou-se da fenda e fez seus corpos sentirem o tremor.
— A fenda está fechando — advertiu Kabir.
— Não podemos esperar.
Muni e Gauri entraram pela fenda.
— A escadaria de luz vai se desfazer, Mahara. Eles têm os códigos.
— Sim, mas se a fenda fechar, eles precisarão esperar um tempo muito longo pelas condições propícias. Muni terá que esperar por Gauri. Como eles vão proteger essas coordenadas?
— Não podemos esperar. Tenho certeza de que eles encontrarão um jeito de guardar o lugar. A luz enfraquece. Está na hora.
O casal mergulhou para dentro da abertura assim que percebeu a luz ficar mais tênue. O rasgo foi diminuindo, até não ser mais visível.
Maio de 2013.
Depois de receber as imagens de Green, em Londres, Elizabeth Foster traçou a rota: a última parada feita pelo amigo. Passaria por Surate, Vadodara, Banswara, até Vijay Stambha, em Chittorgarh. As paradas estratégicas incluíam comida, banho e pernoite.
Ainda em solo inglês, contatou os amigos Yogesh e Patel, pesquisadores da Universidade de Sharda, próxima de Nova Deli, não demorando muitos dias para obter algumas respostas sobre os inscritos do amigo Green.
“O que eu sei não é senão o que todos sabem, ou o que se encontra disponível para pesquisa. Não há muito registro escrito sobre isso. Liguei para o meu amigo, Raj, que mora perto de Alanda. Já ouviu falar? Ele estuda mitologias antigas e me disse que a torre é um exemplo notável de pluralismo religioso. Ela concentra representações de muitas crenças. A Vijaya Stambha é muito antiga, mas nem tanto. Data de 1448. Sofreu alguns saques ao longo do tempo. São nove andares. Você pretende ir até ela? Eu nunca a visitei, acredita? Raj me contou que sua estrutura, em forma quadrangular, desenvolve-se em mais ou menos 38 metros de altura, com aberturas e varandas orientadas para os quatro cantos cardinais de acordo com a tradição mongol. Perguntei sobre os ícones e símbolos. Ele me falou que estão por toda a parte e nos 157 degraus da escada interna que levam ao terraço, mas alguns deles, permanecem intraduzíveis. Os identificados são representações de deuses e deusas hindus, além de alegorias das estações, armas e instrumentos musicais, um verdadeiro inventário de livros de estatuária e escultura, da iconografia hindu. Eu anexei documentos que meu amigo mandou, mas talvez Patel tenha mais sucesso que eu em lhe auxiliar, minha cara Foster.
Um abraço,
Yogesh.”
“Eu me lembrei de ter ouvido uma história semelhante quando era muito jovem. Envolvia uma escada em espiral que conectava uma dimensão a outra. Uma escada, usada uma única vez pela visita ou encarnação de uma entidade das estrelas.
Alguns antigos diziam que muitos foram apanhados pelo fechamento calamitoso dos caminhos interdimensionais e ficaram por aqui.
Como eram seres estelares brilhantes em seu próprio universo, caídos na Terra, ficaram enredados no tempo. Alguns acabaram como o pobre Abang Aku, um fragmento espiritual do cosmos capturado na gravidade do carma humano; uma estrela gloriosa inerte no fundo da escada para o céu, dependente do desordenado destino humano para sua própria realização.
Meu irmão mais velho é uma referência na comunidade dos Orang Asli. Ele sempre adverte que os espíritos não serão livres até que as raças mais jovens consigam a nobreza de propósito e pureza de coração.
Mas essa é uma história que ninguém mais conta. As gerações perderam o poder de passar o conhecimento de forma oral. Talvez você devesse vir nos visitar e conversar pessoalmente com ele e com os outros anciãos. O que acha? Seria um prazer receber você em nossa humilde casa.
Venha!
Do sempre colega e amigo Patel.”
Juntou todas as anotações, incluindo o conto de Borges, traduzido em diversas línguas e suas interpretações.
Setembro de 2013. Uma semana antes.
Elizabeth Foster aportou em Mumbai numa quinta-feira calorosa, poeirenta e sem indícios de chuva para aliviar o bafo que subia das ruas da cidade portuária. Enfiada em uma calça jeans surrada, com botinas já pedindo aposentadoria e a velha mochila de lona marrom, circulou pelo cais arrastando a mala até encontrar a saída.
O taxista a levou para o hotel cruzando as ruas malucas daquela cidade portuária caótica em um veículo que ela apostava ser de outro planeta tamanha poluição de coisas penduradas nele.
No hotel, Foster agradeceu aos céus pelo banho e pelo descanso. Apesar do calor ainda presente no final da tarde, uma esticada de pernas pelas ruas próximas não faria mal. Comeria uma comida típica, buscaria informações turísticas sobre Chittorgarh e compraria algum suvenir. Tinha esperança de encontrar Green com o auxílio do guia contratado, ao longo da jornada que planejara.
A ligação falhava. A estática comia as sílabas das palavras. As pessoas iam e vinham. O começo da noite parecia mais vivo e presente. A rua parecia uma das vias de um enorme formigueiro. O barulho das passadas e conversas não ajudava em nada. Enquanto sustentava a ligação, seguia junto da multidão.
— Um velho ancião, um Orang Asli, contou sobre uma lenda para um amigo daqui. Disse que há uma escada espiral que conecta uma dimensão a outra. — ela avistou o grande portão da Índia.
— Green era um lunático e não deixou rastro. Não pode seguir uma simples lenda.
— Não é somente uma história, Max. Ele não faria isso.
— Elizabeth… — houve um silêncio. — Sei que o ama, mas ele deve ter se metido em alguma encrenca, ou se perdido na selva. Aí, ainda é a pré-história desse nosso mundo. Ninguém se liga em tecnologia avançada. Você está correndo atrás de algo que não existe.
— Você está enganado. Você tem uma visão errônea desse país maravilhoso. E a torre existe. Você sabe disso! É um ponto turístico. Fica em Chittorgarh. — Alguém apressado esbarrou nela, quase fazendo os papéis que segurava soltarem-se e perderem-se naquele apinhado humano. — Não é muito distante da minha rota.
— Mesmo assim, você está perdendo seu tempo, Foster. Aquelas imagens que recebeu talvez não signifiquem grande coisa. Não é muito científico, sem falar de não ser lógico, seguir uma lenda contada de forma vaga em um conto de um livro de um escritor de fantasia.
— Não estou lhe ouvindo muito bem, Max. Falamos depois.
Desligou o celular. Max não conhecia Green no que dizia respeito à pesquisa. Ela não tinha dúvidas quanto àquela descoberta. Segurava os papéis na mão. Aquilo não era uma fantasia. Era um portal, um ponto de passagem, talvez temporal, mas, certamente, interdimensional.
Setembro de 2013. Tempo atual.
A tarde já findava e o céu carregava nuvens pesadas. A chuva era uma promessa para antes da noite.
O guia contratado para levá-la estava no portão principal, junto do motorista. Ele a tinha avisado que restava pouco para o fechamento dos portões. Ela o tinha deixado do lado de fora por segurança. Não queria ninguém bisbilhotando as anotações e fotografias.
A porta ficava no lado sul. Seis degraus a separavam da base da escadaria. Ela retirou os sapatos e os alinhou do lado direito do primeiro degrau externo. Pelos pares próximos – chinelos, botinas, sandálias –, ainda havia cinco pessoas no topo da torre. Para um ponto turístico bem conhecido, o movimento era pouco.
Perguntava-se como Green registrara tudo aquilo com gente ainda circulando na torre.
A escada estreita iluminava-se pelas pedras vazadas, esculpidas minuciosamente. Observou os símbolos nas fotografias. Comparou com os desenhos. Os símbolos de significado desconhecido tinham uma linha circulando-os.
Tudo o que Elizabeth Foster fez foi tocar, conforme preconizado por Green, na pedra apontada nos registros como a primeira da sequência, e ela se moveu meio centímetro para trás. Seus pés sentiram um leve tremor e as primeiras palavras foram ditas.
Pahala kadam… Ek daravaaja kholo…
Um sussurro ao pé do ouvido, nada mais. Como se alguém estivesse aí, ao seu lado, assoprando os vocábulos em hindi, verbalizando aquilo que ela compreendia muito bem.
— Que porta abrirá?
Não recebeu resposta. O jeito foi continuar com aquele ritual que se iniciara. Green, por certo, e por incapacidade, não traduzira as palavras, mas conseguira chegar até o topo. Disso Foster tinha certeza.
Ao seguir os registros, logo após a quarta pedra, um novo conjunto de palavras assopradas.
Agar aap ek maargadarshak hain…
Mujhe bacha liya jaega…
Dessa vez, ela teve a nítida sensação de ter visto uma sombra atrás de si. Voltou-se para verificar, mas apenas os últimos raios de sol penetravam na estrutura através dos vazios dos rendilhados de pedra deixados de propósito pelos escultores caprichosos daquele monumento.
Voltou a concentrar-se. “Se você for um guia, eu estarei salvo.” Ela repetiu para si mesma buscando um entendimento mais amplo. Talvez aquela escadaria estivesse ligada a espiritualidade, como seu amigo apontou. Talvez o portal não fosse senão uma janela para o mundo espiritual onde, segundo algumas crenças, todos se reencontrariam em algum momento.
Um casal passou por ela, descendo as escadas. Dois ou três degraus acima, e após outras pedras tocadas, um novo sopro.
Main astitv mein hoon…
— Onde você existirá? Quem é você? De onde veio?
A sombra, dessa vez, manteve-se visível. Foster percebeu que ela crescia enquanto a subida era realizada.
Um grupo de três pessoas desceu indiferente a ela e àquela manifestação, fosse o que fosse.
A luz vinda de fora já era mais difusa e fraca, mas uma luz mais intensa brilhava no alto da torre.
O terceiro sopro de palavras aconteceu depois da metade da subida. Mujhe apana raasta jaana chaahie… Foster vislumbrou seu acompanhante, antes uma forma amorfa, agora, muito mais visível e definida. Assemelhava-se a um homem. Era jovem. Seus traços, ainda borrões pouco definidos. Sua imagem ainda estava em formação.
— Precisa seguir seu caminho? Como? Para onde?
Na última curva, quase sem fôlego, Foster pôde vislumbrar o que brilhava no topo da torre, cujas paredes pareciam vagas naquele instante. Diante dela, pouco mais de dez degraus acima, uma abertura vibrante de luz clara. Larga o bastante para a passagem de um ser humano, era circundada por milhares e milhares de pequenas partículas verdes e azuis que, juntas, formavam uma parede parecida com a íris humana.
Foster olhou para trás. A figura que se ergueu para ela era humana, não mais um borrão.
Ela seguiu ao lado dele, tocando as últimas pedras, até a fenda abrir-se por completo.
— Main ek hoon… Viajante.
Mal pôde acreditar quando ele falou.
— Você é um viajante? Fala minha língua? Kya aap meree bhaasha bolate hain?
— Eu falo sua língua.
O brilho intenso da abertura iluminava toda a parte superior da torre e se difundia. Foster sentia-se mergulhada na luz.
— De onde você é?
— Sou de outro plano. O que você chama de dimensão. Nesse plano, onde estamos, sou chhaaya. Sombra. Contudo, mesmo aqui, mesmo agora, minha consciência é livre daquilo que chama de consequências cármicas. Sou o que alguns denominam de ‘o ômega do alfa adâmico’. Sou perfeito.
— Por que está aqui? Desde quando? Quando veio? — Ela tinha tantas perguntas para fazer que mal respirava entre uma e outra.
— Fiquei preso. Viemos para ensinar. Meu guia foi morto há muito tempo, pouco depois de essa torre ficar pronta. Precisei esperar por você. Reencarnações.
— Por mim…? Eu fui seu guia? Como? E… E meu amigo…? O que veio antes? Onde ele está?
— Seu amigo… Ayogy.
— Indigno?
— Ele não poderia ter me levado. Ninguém entra sozinho.
— Ele… Morreu? — O silêncio dele confirmava. Foster não podia fazer nada mais. Conhecia bem Green e, apesar do afeto, os defeitos eram inegáveis. — Existem outros portais?
— Ainda não é tempo. As gerações mais jovens precisam se aperfeiçoar. Libertarem-se.
— O que acontecerá comigo do outro lado?
— Aprendizado.
— Eu sou seu guia, mas quem aprenderá serei eu?
— Isso.
Aquilo tinha jeito de recomeço, transformação, descoberta. Foster não hesitou. Oportunidade de aprender sempre a manteve além de seus colegas estudiosos e, segundo Max, além de seu tempo e lugar. Agora, talvez, a expressão do amigo fizesse bem mais sentido.
Nota:
1 Borges, Jorge Luís, Livro dos seres imaginários, 1989.
(…)
“Nas escadas da Torre da Vitória vive desde o princípio dos tempos o A Bao A Qu, sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só goza de vida consciente quando alguém sobe as escadas. A vibração da pessoa que se aproxima infunde-lhe vida, e uma luz interior insinua-se nele. Ao mesmo tempo, o seu corpo e a sua pele quase translúcida começam a mover-se. Quando alguém sobe as escadas, o A Bao A Qu coloca-se quase nos calcanhares do visitante e sobe prendendo-se no rebordo dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. Em cada degrau a sua cor intensifica-se, a sua forma aperfeiçoa-se e a luz que irradia é cada vez mais brilhante. Testemunho da sua sensibilidade é o facto de só adquirir a forma perfeita no último degrau, quando aquele que sobe é um ser evoluído espiritualmente. Se assim não for, o A Bao A Qu fica como que paralisado antes de chegar, o seu corpo fica incompleto, a sua cor indefinida e a luz vacilante. O A Bao A Qu sofre quando não pode formar-se totalmente e a sua queixa é um rumor quase imperceptível, semelhante ao toque da seda. Mas quando o homem ou a mulher que o fazem reviver estão cheios de pureza, o A Bao A Qu pode chegar ao último degrau já completamente formado e irradiando uma luz azul viva. O seu regresso à vida é muito breve pois, quando o peregrino desce, o A Bao A Qu rola e cai até ao degrau inicial onde, já apagado e semelhante a uma lâmina de vagos contornos, espera o próximo visitante. Só é possível vê-lo bem quando chega ao meio das escadas, onde os prolongamentos do seu corpo, que ao jeito de bracinhos o ajudam a subir, se definem com clareza. Há quem diga que ele olha com o corpo todo e que, ao tato, faz lembrar a casca do pêssego. No decurso dos séculos, o A Bao A Qu só chegou uma vez à perfeição.”
(…)
2 A Torre da Vitória
https://en.wikipedia.org/wiki/Vijaya_Stambha
3 Nalanda University, Bihar
http://whc.unesco.org/en/list/1502
4 Sobre o significado de torre
https://deccanviews.wordpress.com/2016/12/24/stambhas-in-architecture-depictions-from-india/
5 Arqueologia na Índia
http://asi.nic.in/asi_monu_tktd_raj_chittor.asp