A galeria estava cheia, mas ela reparou no homem, no momento em que ele entrou, batendo as mãos no sobretudo de lã na tentativa de tirar a água e impressão de ter buscado abrigo casual, fugindo do aguaceiro que caía na cidade.
Observou-o à distância, trocando olhares disfarçados, numa dança sensual discreta, entre uma fotografia e outra, entre uma peça e outra da exposição.
A sedução foi interrompida com a entrada dos artistas e seu espetáculo, mesclando música, poesia e Bukowski pulsando na voz dos performáticos. Ah… Bukowski e sua peculiar visão do mundo e dos desafortunados.
“Why do you haggle your beauty?” I asked. “Why don’t you just live with
it?”
“Because people think it’s all I have. Beauty is nothing, beauty won’t stay. You don’t know how lucky you are to be ugly, because if people like you you know it’s for something else.”
“O.k.,” I said, “I’m lucky.”
“I don’t mean you’re ugly. People just think you’re ugly. You have a fascinating
face.”
“Thanks.”
We had another drink.
“What are you doing?” she asked.
“Nothing. I can’t get on to anything. No interest.”
“Me neither. If you were a woman you could hustle.”
“I don’t think I could ever make contact with that many strangers, it’s
wearing.”
“You’re right, it’s wearing, everything is wearing.” ²
Ela aceitou o vinho que o garçom ofereceu. Tomou um gole generoso. Puxou o ar e tomou outro, para ganhar a sensação de ter asas nos pés. Vinho tinto, sangue pulsante por afeto, qualquer resto de ilusão, ou envolvimento. O respirar dos amantes, o ombro dos solitários.
“Dientes de flores, cofia de rocío,
manos de hierbas, tú, nodriza fina,
tenme prestas las sábanas terrosas
y el edredón de musgos escardados.
Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame.
Ponme una lámpara a la cabecera;
una constelación; la que te guste;
todas son buenas; bájala un poquito.
Déjame sola: oyes romper los brotes…
te acuna un pie celeste desde arriba
y un pájaro te traza unos compases
para que olvides… Gracias. Ah, un encargo:
si él llama nuevamente por teléfono
le dices que no insista, que he salido…” ³
A poesia recitada em sua mente diante da fotografia de Alfonsina Storni veio acompanhada da música de Mercedes Sosa⁴. Ela imaginou-se deitada no mar, sendo levada pelas ondas. E lá estava o estranho, bem à sua frente. Precisava fazer as pazes com o destino, dar um basta na frieza de sua boca. Procurou pelo garçom e levou uma segunda taça.
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— Essas fotografias antigas, essas pinturas, pequenos objetos… — Ela estendeu a bebida. Ele aceitou a oferta e segurou a taça. — São lindos. — Os olhos fixos nos dele, lançando um convite. Castanhos de tons diferentes se encontrando, enfim, diante de uma fotografia.
— A sociedade é doente — ele acusou. — Uma exposição sobre suicídio faz nosso olhar mergulhar no vazio da existência. Não deveria causar excitação, êxtase, fruição plena. Sexo é o que causa isso. Correr a mais de 120 por hora… Mas isso… É uma reverência à morte premeditada — apontou para o papel emoldurado mais adiante.
— Masurao ga
Tabasamu tachi no
sayanari ni
Ikutose taete
Kyo no hatsushimo ⁶
— Leu Mishima?
— Spring snow, Runaway horses… — ela citou de imediato.
— Mishima era controverso, mas um romancista excepcional. Esse poema… Sabia que um dos elementos do seppuku é a composição de um poema jisei ou de morte? — E ele completou: — Os japoneses são dramáticos.
— Intensos, eu diria. Determinados. — Ela sussurrou bem próxima: —Não há muito ardor no Ocidente. Somos pessoas superficiais, vazias, mergulhados em nosso umbigo. A menos que sejamos artistas, poetas, escritores…
— Sou médico neurologista.
Ela soltou um riso discreto e bebericou o vinho.
— Você deve ser uma exceção — pontuou, querendo desculpar-se. — Sabia da exposição ou… — Ela percebeu o riso contido. — Como chegou até aqui?
— Estava chovendo muito. Quis fugir do mau tempo. — Ele aproximou-se um pouco mais. — Estou perdoado?
— Veio sozinho, então?
Ele confirmou com um balançar de cabeça e bebeu o vinho sem pressa, como se o tempo lhe pertencesse, e ela conteve o ímpeto de mordiscar os lábios finos, de tom rosé clássico.
— O destino é algo perturbador. Talvez a ordem cósmica conduza mesmo a ordem natural em determinados momentos. Ou talvez seja o tema da exposição que esteja atraindo os desafortunados. — Apontou para a foto. — O que pode ter colocado o jovem Robert Wiles, estudante de fotografia no lugar e na hora exata da morte de Evelyn McHale? O que o fez estar em frente ao Empire States segundos antes da queda?
⁷
— Intuição? — ela perguntou mesmo cética com relação à questão. — Pressentimento?
Deixaram o burburinho preencher o silêncio que cresceu e aproximaram-se de outra fotografia. Ela sentiu o cheiro amadeirado do perfume arrematar suas últimas barreiras.
⁸
— Ao menos Wiles não foi considerado um aproveitador… — Ele acrescentou. — Andy Warhol poderia ter sido considerado um. Apropriou-se da imagem, sem dar referências. Mesmo se a imagem fosse de domínio público, as citações ainda existem.
— Não é mais a mesma imagem. A fotografia original perdeu a essência. Warhol destruía as ligações com o original através da cópia repetida. Não se pode considerar apropriação indevida pelo processo de construção artístico. Além do mais, todo o artista é contraventor, controverso. Está à frente de seu tempo.
— A sociedade condena o que não conhece.
— Agora você não tem mais desculpas — ela o advertiu.
— De qualquer maneira, a morta está aí, desfigurada, exposta.
— Eternizada.
— Sob esse ponto de vista…
— Sou positiva.
— Entendo seu ponto.
— Sendo médico, não deveria ser positivo também?
— Sou realista, eu diria.
Pararam diante de um manuscrito original.
“(…)Vem para mim, amor… Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!…” ¹⁰
Ela largou o vinho sobre a pequena mesa. Ele fez o mesmo.
— Deveríamos construir nossas teses.
— Deveríamos — ela concordou.
— Sobre o propósito dos deuses, os desafortunados e a crueldade da morte…
— A crueldade da vida…
A chuva havia dado uma trégua.
Notas e links:
1 Bilhete suicida de Kurt Corbain Fonte: LINK
2 Bukowski, Charles – The most beautiful woman in town and other stories, 1983
Texto: LINK
3 Storni, Alfonsina – Voy a dormir, outubro de 1938. Escrito dias antes de seu suicídio, em um solitário hotel de Mar del Plata. Seu corpo é resgatado do mar no dia 25 de outubro de 1938.
4 Sosa, Mercedes – Alfonsina y el mar , 1969 LINK
5 Desenho feito no programa word. Artista desconhecido.
6 The sheaths of swords rattle
As after years of endurance
Brave men set out
To tread upon the first frost of the year.
Tradução livre:
As bainhas das espadas chocalham
Como depois de anos de resistência
Homens corajosos partem
Para pisar na primeira geada do ano.
7 Artigo: LINK
8 Nota do New York Times, 1947. LINK
9 Andy Warhol – Suicide Fallen Body, 1962. LINK
10 Espanca, Florbela – Súplica LINK
11 Imagem da capa: Retrato de Thomas Chatterton, óleo sobre tela de Henry Wallis, 1856 LINK