Arquivo mensal: novembro 2021
O Astronauta – Miniconto

Ejetou-se da cabina assim que o incêndio interno atingiu proporções incontroláveis. Foi lançado ao espaço em uma fração de segundos. Foi se distanciando da nave como em sonhos, com lentidão e suavidade. Girou o corpo e assistiu à desintegração do que antes fora sua casa por anos a fio; a casa que o fazia circular pelo cosmos em busca de algo que sequer ele mesmo sabia.
Ao seu redor, a escuridão e pontos cintilantes, distantes anos-luz de onde estava agora, acenavam com discrição. Calculou, como sempre fazia. Os marcadores apontavam o fim. Tinha cada vez menos o que respirar. Cada vez mais sono. Os olhos pesados. Entregou-se ao espaço. Afinal, aquele vazio o abraçava tão aconchegante quanto no começo e talvez fosse ali, em meio ao nada, o lugar certo.
O corpo flutuava. Ele também. Enquanto o corpo degenerava, ele, extasiado, seguia de olhos abertos na imensidão, iluminada e perpassada por bilhões e bilhões de sóis, por cometas e meteoros, corpos celestes estranhos e nuvens de poeira cósmica. Dentro daquele traje, junto à carcaça, já não batia coração algum. No entanto, sentia-se completamente vivo e pulsante. Dentro dele habitava tudo; o universo inteiro, pleno e esplêndido.

Microconto

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Sobre a vida…

SOBRE A VIDA
Sobre a vida? Não sei. Não há muito o que dizer. São muitas definições. Ela acontece em um intervalo entre o nascimento e a morte, e talvez até antes e depois. Mas não sabemos. Ela acontece entre um amor e outro, entre amanheceres e finais de tarde. Alguns ensolarados, outros tempestuosos. Um choro aqui, risos ali. Entre uma história ou outra para fazer dormir, ou nos pontos caprichosos de um crochê. Ela acontece independente de mim, de você, de quem quer que seja.
Porém, se eu for falar sobre a vida, que seja sobre amor. E se falar sobre o amor, que seja sobre pessoas. E se falar sobre pessoas que seja sobre pessoas especiais, sobre momentos eternos, sobre memórias indeléveis. Em mim, há espaços ocupados por figuras de grandes mulheres e a força passada por elas sustenta a minha própria força. Se é assim que acontece na vida, não sei, mas acontece comigo.
Das coisas mais ternas vividas por mim, está a presença dessa mulher, que completou 100 anos no domingo (21/11). Sua figura esguia e elegante da minha infância, hoje é miúda pela idade e pelo trabalho incessante de costura na juventude. Juventude que se encerrou nas cores de tecidos, linhas, agulhas; no movimento do pedal da máquina de costura, nos dias e noites de trabalho. Força feminina que mostra como o tempo se dobra quando nos voltamos para o cuidado com o outro. Insuperável é a imagem dessa mulher. Inquebrável é o amor e a admiração que nasce por ela a cada encontro.
Assim como as grandes e frondosas árvores, que sombreiam as margens de rios, ou abrigam bandos de pássaros, poetizando a grande e maravilhosa criação, ela se ergue em mim, como referência de vida. A essa mulher caberiam outras tantas palavras além das que escrevo agora, mas seria inútil; não conseguiriam conter todos os significados do meu sentimento e de sua própria existência em mim. Sou testemunha de um coração cheio de bondade.
A essa mulher, Gelcy, minha tia e segunda mãe, que costurou a vida em panos multicores, que tramou os fios em crochês de um tempo difícil, a minha gratidão e homenagem.

Microconto
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Desafio 5 palavras: cafeteria – preâmbulo – humano – solução – lua
Cinquentenário do 20 de Novembro
Muito, muito feliz!
Meu poema, cujo título é LOGRO, foi selecionado no concurso 50 Poesias e Textos sobre o Cinquentenário do 20 de Novembro.
Ele vai integrar o livro “Cinquentenário do 20 de Novembro em Textos”. Esse concurso integra as comemorações pelos 50 anos da criação do Dia da Consciência Negra. O concurso selecionou poemas e outras formas de texto sobre a temática e questões relacionadas à data.
Nesse poema eu falo dos Lanceiros Negros e de sua história.

Está chegando o dia!

Neste sábado, 13 de novembro, às 15 horas, estarei participando da cerimônia de premiação do IV Prêmio ABERST de Literatura.
Estarei concorrendo com meu livro FULIGEM na categoria Narrativa Longa de Ficção de Crime – Prêmio Rubem Fonseca junto a dois grandes escritores, J.P. Schmidt e Amilton Alves. Páreo difícil, mas já agradecida por chegar até a final entre escritores experientes e com trajetórias de sucesso.
A cerimônia acontece no canal CULTURA À MILANESA, no YouTube.
Aos leitores(as) desse blog, fica meu convite para prestigiarem o evento e minha gratidão pelo apoio de sempre.

Microconto
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Desafio 5 palavras: café – esperanto – quiabo – cocheira – tendinite
O Escudo de Nirmud – Miniconto

O Escudo de Nirmud
Naquele tempo, o reino era desmilitarizado, desprovido de exército e ganância. O único combate aceitável era o combate à fome que, em época de seca ou enchente, destruía os sonhos de uma sociedade justa e evoluída. Por esse motivo, as mãos de Nirmud plantavam os grãos, curavam os doentes, caçavam e escreviam as leis dos antigos. Nenhum outro cidadão tinha tanto prestígio quanto ele, o predestinado.
Foi difícil conviver com a guerra cósmica, trazida por exércitos desconhecidos, rasgando a terra e criando feridas profundas. Foi igualmente difícil ver seu pai e seus irmãos morrerem sob espadas faiscantes que jamais manuseara. Nirmud correu pela pradaria descalço, de mãos vazias, competindo com o vento e clamando pelos deuses de sua crença.
Então, caiu diante de um escudo cujas cores assemelhavam-se às chamas da forja e tão brilhante quanto as pedras reluzentes encontradas nos rios. Junto dele, uma maça, semelhante às clavas de madeira que seus ancestrais carregavam, mas diferenciada pelo material, tão reluzente quanto o escudo.
Os deuses haviam atendido seu clamor. Ele tomou o escudo e desceu para onde a luta acontecia. Não houve espada capaz de quebrar sua defesa; nenhuma arma capaz de macular seu corpo. Nirmud fez tombar os inimigos, um a um; sucumbiram diante dele.
Manipulação de imagem…
Histórias Fantásticas (6)

O Gato Azul
Ori nasceu em família de muitos irmãos e irmãs, em um terreno baldio no centro de uma grande cidade. Moradores de rua e miseráveis que eram, viviam do que encontravam em terrenos vazios ou fundos de restaurantes e da misericórdia de donas de casa sensíveis. Sua mãe, ao vê-lo pela primeira vez não estranhou a cor. Seu pai, contudo, torceu o nariz e questionou a descendência, uma vez que todos os outros seguiam o padrão: alaranjado, amarelo e branco.
Levou uma infância tranquila, apesar das brincadeiras da família sobre os tons azulados. A adolescência, no entanto, desestabilizou a convivência fazendo-o afastar-se de casa. Seu pelo alongou sedoso, ondulou e, ao vento, as ondas faziam-no parecer estar se evaporando rumo ao céu. Das ondas, nasciam pontos luminosos. Grandes, pequenos, cintilantes. Sob o sol, faíscas visíveis. À noite, sob o luar, assemelhavam-se a estrelas, competindo com o céu.
A vizinhança estranhava o gato. Criaram-se histórias sobre Ori, sobre sua natureza mágica, pertencente às bruxas e seres sobrenaturais, e multiplicavam-se tentativas de aprisionar o bichano. O sossego acontecia depois da fuga para algum lugar isolado, longe das vistas do mundo. Passou a não circular de dia. Apenas a Lua acompanhava suas caminhadas e acarinhava seu sono.
Quando completou idade de adulto, seu pelo tornou-se de um azul translúcido e o corpo ganhou leveza fazendo suas corridas e saltos mais ágeis, ganhando alturas antes não alcançadas. Por causa de sua aparência, cães corriam para longe. Os outros gatos sentiam-se protegidos na presença dele e foi assim por muito tempo. Ori não entendia sua natureza, mas aceitava o destino que lhe fora imposto.
Ao fechar-se o ciclo de 8 anos, na primeira lua cheia, as estrelas de Ori brilharam com mais intensidade. Seu pelo cintilou e ele voou para o céu. Quem o viu naquela noite conta que ele foi se desfazendo em luz e subindo, subindo, até ganhar lugar junto à Lua.

O Relógio
Samara encontrou-o no fundo de uma gaveta, na escrivaninha do avô, quando seu pai e tios juntavam coisas e separavam para doação depois da morte do avô. Um relógio antigo, de corda, cujo ponteiro maior se encontrava fora do eixo, preso apenas pelo ponteiro fininho dos segundos.
― Posso ficar com ele, pai? ― perguntou, erguendo-o alto para o pai ver do que se tratava.
― Ele não funciona, filha. Jogue no lixo.
― Mas é bonito. Posso ficar com ele?
― Claro, só não me peça para mandar consertar. Seu avô dizia que não tinha conserto.
― Ele dizia que tinha parado no dia em que ele chegou aqui ― completou o tio mais velho. ― Quando conheceu sua vó.
― Deve ter sido por amor a mamãe ― Laura disse brincando. ― Mas não é engraçado? Ele nunca se desfez dele.
Não importava muito. Ela estava encantada com o relógio. Ela o consertaria por conta. Não seria difícil abrir o vidro e encaixar o ponteiro, dar corda, ouvir o tic-tac… Seu avô talvez gostasse de saber que alguém naquela família ficaria com ele.
À noite, já em casa, no quarto, com o computador ligado e as abas de pesquisa abertas, lia com atenção o apanhado de textos sobre relógios antigos. Assistiu aos vídeos atenta e deu início àquela jornada de relojoeira amadora.
Com a ajuda de uma pinça tomada de empréstimo das coisas da mãe, abriu a parte posterior. Nela, uma inscrição bem visível: AOM, 3022. Depois de aberto, desenroscou os parafusos das duas presilhas laterais com a ponta da pinça servindo de chave de fenda, retirou o corpo do mecanismo e o deitou sobre a mesinha. Recolocou o ponteiro no lugar, tomando o cuidado de não entortar os outros dois. Acertou o horário delicadamente. Devolveu tudo ao seu lugar e parafusou nas presilhas. Restabeleceu a tampa posterior.
― Pronto! Agora é só dar corda. E o relógio brilhou.
Créditos das imagens: Evelyn Postali
