Marialva e os homens pelados – Conto

Capa: Evelyn Postali
Imagem creative commons CC0

Ninguém sabe precisar bem quando os homens começaram a nascer pelados. Pelados de cabelo, pelados de pelos. Não existia pentelho algum. Uma lisura única. Em todo o corpo. Pernas, axilas, virilha.

As mulheres não. As mulheres continuavam com suas belas e longas cabeleiras e mantendo a depilação apenas respeitando suas vontades individuais.

Os filostrólogos, na época das primeiras mudanças genéticas, esbravejaram nas mídias sobre ser uma revolução provocada estrategicamente pelo feminismo exacerbado, contrário às leis da natureza de todos os tempos. Uma nova onda de rebeldia feminina, uma vez que os homens haviam se curvado às mulheres no comando de alguns setores sociais, deixando a sensibilidade tomar forma e moldar uma nova sociedade mais igualitária, mais justa e capaz.

Houve também aqueles que elaboraram teorias de um novomachismo, não tolerante à jovem ordem, aliando-se a grupos cuja base religiosa arcaica continuava a apedrejar mulheres e grupos minoritários. Esses grupos foram consumidos com o tempo, quando mulheres ergueram-se com força e militarizaram-se, formando um exército de extermínio.

Os cientistas dividiram-se. Alguns pesquisavam possíveis mutações genéticas decorrentes de uma substância oriunda de rãs, outros, buscavam reconhecer um vírus mutante extraterrestre. Nada profícuo. Inúmeras pesquisas se desenvolveram ao longo de anos buscando a origem da coisa toda para reverter o processo, até a grande maioria dos cientistas chutar o balde e o mundo aceitar a lisura da pele como ‘normal’. Afinal, nenhum efeito colateral era verificado além da ausência de folículos capilares e, sequer positiva foi qualquer tentativa de fazer nascer algum fio por menor que fosse.

Os governantes, olheiros do poder político e econômico ocidental extremista de direita, assustados com as mudanças na fisiologia humana e sem postura real de liderança, disseminaram a ideia de o vírus ter sido produzido na China e espalhado pelo mundo via contato pessoal mesmo, uma vez que a nação chinesa se curvara aos pés de uma mulher, a presidenta Xa Janpang.

O fato é que as gerações foram se sucedendo e a pelagem tornou-se escassa no homem até desaparecer por completo décadas depois dos primeiros nascimentos.

No começo, a moda dos implantes capilares ‘bombou’. Houve uma corrida às clínicas estéticas e ela não se restringia às classes mais abastadas. Quanto mais rude e primário era o homem, mais sua vaidade gritava pela pelagem perdida. Os implantes, contudo, não vingaram. A pele expelia as iniciativas.

Perucas não eram mais aceitáveis que lenços. Afinal, todos sabiam da artificialidade do cabelo. Ficava ridículo usar os apliques e tanto mulheres, quanto homens evitavam o contato com parceiros cuja vaidade chegava a esse ponto. Era ponto pacífico: homens com perucas passavam longe da sensualidade.

Marialva Borges pós-graduou em biotecnologias alternativas quando sua mãe, Marinelva Gabriela, cientista genética renomada fundou o LabProPelo, um centro de pesquisas financiado pelos rendimentos da fortuna dos pais. Depois de um pós-doutorado bem sucedido e três bolsas de pesquisa fora do país, voltou ao Brasil e trabalhou com a mãe em prol da solução da pelagem masculina até a partida da mãe, tão jovem e com tanto ainda por realizar.

Depois daquele ano fatídico, Marialva viveu o laboratório vinte e quatro horas por dia, assumindo o lugar da mãe, até conhecer Edmundo, dez anos depois e dez anos mais novo. O encontro foi acaso, ao aceitar um convite insistente de outra pesquisadora do da mesma área atuante.

O ambiente escuro do pub aconchegou os olhares e Marialva interessou-se pelos grandes olhos castanhos do rapaz cujo trabalho era carregar laranjas na feira. A conversa agradável e macia finalizou o balé deslizando nos lençóis de um quarto envidraçado e mobiliário escasso. O relacionamento foi além daquela noite, amanhecendo em cafés da manhã com gosto de morangos e pães de queijo.

A empolgação da cama percorria os dias nas pesquisas e a evolução nas descobertas apontava para uma substância capaz de, com sua composição química associada ao DNA do sujeito, fazer nascer pelos nas carecas e regiões pélvicas desnudas. “Homens haveriam de retomar a pelagem e a dignidade. Mulheres haveriam de sentir prazer no roçar dos pelos masculinos.” A voz de Edmundo cantava ao seu ouvido enquanto trabalhava. Cinco anos de avanços lentos mas avanços.

Marialva pensava no Nobel em sua 253ª edição, a massagear seu ego nos longos dias de termociclador, micropipetas, microcentrífugadora e olhos enfiados em microscópios de alta potência. Amava Edmundo a cada divisão celular, a cada nova anotação dentro do processo desenvolvido e, na manhã da descoberta da tal mistura, depois de salvar os registros dos estudos e resultados positivos, saiu do laboratório sem planejamento, rumo aos braços incansáveis de seu homem.

Enquanto dirigia imaginava Edmundo com uma vasta cabeleira e pelos no peito. A ideia de uma barba amanhecida por fazer, de um roçar de pernas cabeludas junto às suas a fez acelerar o carro. Sequer lembrou-se de mandar mensagem avisando da ida. E quanto aos colegas cientistas, que se surpreendesse com a notícia na rede mundial de informações.

Acionou a abertura do portão com seu polegar. Observou as flores ladeando a rampa de acesso e estranhou a garagem aberta. Edmundo era esquecido por natureza. Largou a bolsa no aparador de vidro, percorreu a enorme sala de três ambientes e subiu as escadas. Notou a camisa ao chão assim que terminou de pisar o último degrau. Mais adiante, a calça e…

― Mas o quê…? ― Juntou a peça e olhou com atenção. Ela conhecia muito bem aquele vestido.

Descobriu Edmundo na cama com Leocrécia, a cientista do segundo andar do centro de pesquisas.

Não houve briga. Nenhuma palavra alterada sobre o ocorrido. Leocrécia foi demitida. Edmundo carregou suas malas para fora da propriedade e voltou para as laranjas.

Marialva juntou tudo o que lembrava o infiel e incinerou no largo de pedra, em frente da pequena mansão. A fogueira lançou ao ar faíscas de ódio, fumaça escura de desgosto e esmoreceu, transformando as tralhas em um amontoado de cinzas, assim como o amor no peito da pesquisadora.

Quando ela voltou ao laboratório, sentou-se diante de seu computador e abriu os arquivos. Pensou no Nobel em sua 253ª edição. Pensou nos amigos cientistas a aplaudirem e invejarem tal feito. Pensou no sentimento de orgulho da mãe morta. Por fim, pensou em Edmundo e ponderou sobre todos os homens iguais a ele e deletou tudo o que remetesse à fórmula encontrada. Marialva vendeu o laboratório e desfez-se das propriedades. As verdadeiras amigas, poucas, dizem que se mudou para o Caribe e viaja o mundo, aproveitando a riqueza guardada olhando o mar lamber seus pés na areia, em algum lugar do planeta. Manda cartões postais em datas especiais. Edmundo procura por ela até hoje, mas ninguém tem exata certeza de onde ela está.

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