
GUIOMAR
Na praia do Farol, nem o sol, nem o mar, nem o sossego da areia era mais requisitado do que o trabalho de Guiomar.
No ofício, há mais de 20 anos, entregava o fado a homens e mulheres sem um pingo sequer de compaixão. Traição, romance, fim de carreira, perigo de morte. Nas palavras da vidente cujos ancestrais eram desconhecidos, a vida tinha altos e baixos feito montanha russa.
Via as lágrimas, os sorrisos, os corações compadecidos, os destroçados, também, como via sua própria sina, iniciada aos 15 anos de idade, no encontro com uma velha capenga, de rosto marcado com sulcos e mãos calejadas de dedos grossos.
Naquela época, ao socorrer a senhora em uma situação complicada no mercado, seu destino foi traçado em um olhar apenas e, depois, ao receber o cristal esférico, lisinho feito vidro, aceitou o encargo. A estranheza da família se dissipou aos poucos com a percepção das assertivas e da remuneração recebida dos consultantes.
A bola fria e maciça não mostrava qualquer mudança formal. Contudo, nas mãos sobrepostas de Guiomar, quando a frente de qualquer um que fosse, fazia brotar imagens e vozes vindas sabe lá de onde.
A última leitura de Guiomar deu-se em um ocaso avermelhado, próxima da areia, olhando fundo nos olhos do homem à sua frente. Naquele dia, passado, presente e futuro juntaram-se em um caos pulsante. Foi quando o cristal vibrou e partiu-se ao meio.