Conto

RESUMO

A tarde corria sonolenta igual àquela sensação de perder-se, quando o sono vem e se está querendo ficar desperto. É o meio de tudo o que não é. Entre a plena consciência e a inconsciência total. O zunir das abelhas próximas às azaleias embalavam um sentimento de abandono e letargia.

As tardes dos domingos começavam sempre do mesmo jeito.

— Quando Daniel vai começar a quimioterapia? — a voz da tia podia ser ouvida do lado de fora, na área onde estavam. As irmãs costumavam se juntar para tricotar o que a semana deixava. Ação habitual de muitos anos. Uma proximidade invejável.

— Depois de amanhã.

A tristeza já reinava na casa há algum tempo. A cirurgia que Daniel fizera não tinha dado bom resultado. Todos sabiam exatamente o que aconteceria depois daquele domingo.

Estavam os dois, Pedro e Daniel, próximos da casa. O dia quente trazia o barulho das cigarras que se aninhavam nas azaleias e entoavam aquele canto enfadonho seguindo o ritmo do estio. Da casa vizinha, vinha a música feito um chamado distante e repetido. Depois do almoço, naquele verão, até os cães estavam preguiçosos.

Sentado lá, em cima do capô do carro Daniel olhava para o céu azul e, de vez em quando, para Pedro, ainda escorado na lateral. Já se passou muito tempo… Muito tempo.

E algo, bem dentro do peito o fez arrepiar-se. O álcool que encorajava os músculos não o deixava sentir-se melhor. Implorara pela cerveja e a mãe cedera. Não fazia diferença naquele momento. Não para o que queria. O peito contraiu-se. Apertou os ombros, movimentando a cabeça, contorcendo-a, tentando afastar aquele peso insuportável que existia sobre eles.

Desceu do capô e olhou bem ao redor. Era bom nisso. Sabia quando tudo estava tranquilo. Sabia exatamente em qual momento poderia agir. A tarde despencaria em câmera lenta. O pai ainda debruçava-se na máquina de escrever tentando afastar o nervosismo. A mãe e a tia na cozinha entre um lamento e outro trocavam receitas que ele, provavelmente, não provaria. Olhou mais uma vez ao redor, largou a garrafa de cerveja dentro da lata do lixo e se posicionou em frente ao primo e amigo de longa data. A metade da alma, o amor e amante, o segredo mais precioso.

Suspirou. Pedro tinha aquele olhar marejado, de um verde que o arvoredo que enfeitava a rua não vencia, porque se mostrava luminoso e o fazia lembrar-se do mar.

— Já faz muito tempo… — disse Daniel. A voz macia e cansada alcançou Pedro e o impacto pareceu ser imediato.

Pedro fugiu do olhar, baixando a cabeça e, por um momento, fez o estômago doer. Quando o olhar do outro tentou fixar-se no seu, vencendo aquele turbilhão de sentimentos, ele desvencilhou-se daquela prisão verde, envergonhado. Muito tempo… Muito tempo! E o tempo parecia inimigo dos dois. Não tiveram momentos a sós. Não restara muito tempo para intimidades. Ambos sabiam o quanto desejavam ficar juntos, o quanto desejavam a proximidade.

Não que o primo tivesse se afastado. Não. Pedro nunca se afastava e nunca se afastara dele. Nunca o tinha deixado, nunca partia. Era ele, quem sempre fugia, deixando-o para trás, por vezes preocupado, por vezes com raiva, ou outras, se sentindo culpado por tudo. Sentia-se envergonhado porque era também ele, quem sempre pedia por aproximação, mesmo sabendo que em momento algum Pedro havia desejado distâncias. Não havia nada que o outro negasse a ele. Pedro nunca lhe negava nada.

— O que vai significar isso, Dani? A grande despedida? Nosso último verão? — Pedro ironizou, num tom estranho, diferente, enquanto desencostava-se do carro e seguia em direção da garagem.

— Pedro!

Puxou o braço do primo, fazendo-o virar-se.

— O que foi? — Pedro parou de frente para ele — Quer que eu diga que não estou com medo desse tratamento? Quer que eu diga que sei que as chances são insignificantes? Porque é exatamente disso que a minha verdade se faz. É o que eu sei que vai acontecer.

Passou a mão pelo rosto, num gesto mais do que conhecido. Pedro não protestava quando o assunto se resumia na vontade dele, Daniel. Nunca se recusava. Jamais negava o que quer que fosse. A insegurança não consistia no querer.

— Quer que eu diga que tudo perde o sentido sem você? Que respirar é inútil sem estar do teu lado? Porque é isso que tô sentindo agora, Dani. Se não der certo, se não voltar pra mim…

Na maior parte do tempo, Pedro nada dizia. Apenas deixava-se ser conduzido. Mas viu, naquele momento, o homem que amava preferir gritar, ao invés de silenciar-se e, depois, calando-se novamente, direcionar-se à garagem.

Seguiu-o incerto do que receberia, mas ao entrar foi arrastado para o canto mais afastado e escondido, por trás de um amontoado de caixas. Daquele lugar, ninguém os veria. Aquele segredo, eles carregariam para sempre.

Foi empurrado para a parede e a boca foi arrebatada pelos lábios de seu amor. Macios e quentes, os lábios de Pedro, eram sua perdição. Poderia jurar que ali, moravam todos os pecados do mundo, porque desde a primeira vez, muito cedo, descobrira que bem ali, dentro deles, se deixaria perder totalmente. Lábios que o envolviam e lhe deixavam saber que o mundo diminuía diante de tamanho sentimento.

Nada era muito fácil entre eles. Nunca fora. Mas Pedro de estúpido não tinha nada, nem se mostrava irresponsável ou insano. Sabia que aquela relação que viviam, era mais do que tudo que precisavam. Quando se sentiu na parede, mergulhando no beijo, sabia que estaria queimando em pouco tempo, e os lábios do primo o chamariam o tempo todo.

— Preciso… Agora— num sussurro, clamou pelo que sempre tinha quando a urgência crescia demais e, depois que Pedro escorregou por ele, despindo-o e beijando-o na extensão do corpo até cair de joelhos, puxou-o pelo cabelo com firmeza fazendo-o gemer.

— Diga.

— Eu quero, Dani. Eu quero. Agora. Por favor.

Naquele momento, estava extasiado apenas por ver o primo submisso, com a boca entreaberta esperando pela ordem. O olhar de Pedro, visto daquele ponto, mostrava-se algo incrivelmente sensual. Pura luxúria. Não havia parte alguma daquele rosto que não pedisse para ser violada.

Tinha esperado tanto tempo por aquele momento… O tempo do hospital o fizera esquecer-se de sentir-se assim, arremessado para dentro daqueles sentimentos que via dentro do olhar do primo, para onde podia fugir da morte, da escuridão dos últimos meses, ou semanas, mergulhando para dentro dele.

Arremessou-se de encontro a ele, querendo-o, pressionando-o. Depois, lembrou-se de que queria ir além porque depois de um tempo não haveria mais domingos, não haveria mais segredos, não haveria mais Pedro. Sentia-se feliz toda a vez que conseguia dobrá-lo, submetê-lo até as entranhas, antecipando o deleite. Gostava de sentir o jeans sendo puxado para baixo, a boca do primo, as pernas tremendo…

— Pare — disse Daniel, e segurou-lhe os cabelos empurrando-o para longe.

Os olhos confusos bateram nos seus e um barulho gutural fez tudo parecer pior. A surpresa se fazia visível no outro. Ele o mandara parar. Aquilo nunca acontecia. Pedro parecia estar entrando em pânico, não compreendendo o pedido.

O olhar escureceu e ele parou de repente de respirar, como se o coração pudesse estar machucando-o, ferindo-o, dentro do peito. Molhou os lábios e tentou pronunciar algo. Provavelmente uma pergunta que morreu antes que chegasse até a boca.

Pedro esperava por uma ação. Daniel sabia. Então, puxou o primo para cima, fazendo-o levantar-se. Sentiu raiva porque ali, naquele momento, sabia que Pedro sofria, e culpava-se pelo fato de ele ordenar que parasse. Logo, o jogou contra o concreto, onde antes o deixara ficar de costas. Encostou-se a Pedro, roçando-se e sentindo o tecido que o cobria. E foi assim que o amou: tentando encontrar a melhor forma de desculpar-se porque partiria, porque não conseguira evitar que os dias terminassem. Não venceria aquele jogo de empurra-empurra com a morte.

Retirou a jaqueta, jogando-a próxima dos pés e pronunciou um palavrão, porque, despir Pedro, era algo tão sensual quanto imaginar, apenas imaginar, como podiam ser tão lascivas aquelas linhas que o tecido encobria. Volúpia, paixão. Arrancou a camiseta com a mesma energia, porque o inferno resumia-se em perder-se no outro e, desesperadamente, abriu o jeans puxando-o mais para baixo. Perdição. Aquilo tornava tudo tão dolorido… Doía saber que Pedro aceitava tudo e obedecia aos comandos por amor.

— Você sabe o que eu quero, não sabe? E eu sei o que você quer.

Ele não precisou ordenar. Pedro resmungou ‘foda-se’, e obedeceu, erguendo as mãos e encostando-as à parede, esperando pela próxima ordem.

Não aguardava senão por aquilo. Porque daquele jeito, diante dele, na expectativa, parecia mais tentador, mais carnal, mais impuro, mais passível de machucar. Ele ficou lá, esperando para receber o que quer que fosse porque confiava. Pedro confiava nele. Entregava-se totalmente porque confiava. E mesmo sabendo que, numa hora ou noutra, seria machucado, deixava-se ficar apático ao que queria, mas atento ao que o outro desejava.

Tudo era sempre lindo em Pedro.

Difícil não gostar dele. Difícil não amá-lo por completo. Difícil não querer ouvir os gemidos, implorando por mais, desejando mais. Porque, naquele momento, Pedro deixava escapar os desejos. E pedia.

Pressionou o primo contra a parede e lhe mordeu o pescoço. Devagar. E o ombro. Uma coisa depois da outra. Arranhou o peito. Sentiu a pele. Pressionou-o mais, sentindo o calor. Apertou-o com vontade e murmurou palavras obscenas no ouvido. Chamou-o de coisas que aprendeu com ele. Hora de fazê-lo sentir que pertencia a alguém. Que pertencia a ele. Só a ele e que, mesmo depois de morto, não haveria outro.

Pornografia. A imagem dos dedos na boca do primo. Os longos dedos na boca de Pedro sendo provados por uma língua afoita. Peito de encontro à parede. Músculos firmes sob a carne macia e quente. A perdição diante das linhas das costas. Mãos passeando por sobre os braços. Mordidas na pele. O cabelo cheiroso.

Afastou as pernas num único gesto. A linha da coluna, de cima a baixo. O caminho. A carne branca e as marcas vermelhas em baliza. Adorava fazê-lo chorar e sabia que Pedro choraria por sobre seu caixão. Pronunciou palavras sujas lembrando-se que a areia de seu tempo se esgotava. O pulsar da carne. O protesto. A ação contrária. Mãos espalmadas. Mãos sobre mãos.

— Tu é sempre tão perfeito pra mim, Pedro. Tão delicado.

As batidas do coração nas veias que o irrigavam. Êxtase. O vai e vem intenso, seguro, para dizer que o amaria para sempre. E Pedro também o amaria. Amava-o. Desesperadamente. Cada nervo, cada músculo. O que eles tinham era mais do que o mundo poderia ter. Nada e ninguém arrancariam deles o que ligava suas vidas. Êxtase. Dentro e fora. Nele e no outro.

— Daniel… — Pedro o chamou pelo nome. O nome carinhoso dessa vez não existia. Ali, era o homem que ele amava com todas as forças de seu ser e não o priminho da infância. Entendia aquilo. Entendia que era mais do que sangue, mais do que nome.

O suor dos corpos. O calor. Não era apenas sexo. Nem só pelo sexo. Era mais, muito mais do que aquilo. Ia além. Ali, havia a vontade de amar e deixar o outro saber que era desejado com intensidade. Vontade de dizer que o amava tão profundamente que duvidava que pudesse expressar-se de outro jeito, senão sentindo dor quando ausente. Seu corpo gritou pelos silêncios que eles deixaram e deixariam acontecer. Não queria dizer senão que o amava e que jamais alguém o amaria como o amava. Dizer que a vida era por ele.

— Isso é para se lembrar… — Daniel falou, pouco antes de terminar. Tremeu. Para lembrar que te amo. Seria ali, a última vez. As pernas fraquejavam. Estava feito, então. Deveria dizer, mas falhou vergonhosamente.

O primo soltou o ar dos pulmões. Parecia estar aliviado. Parecia estar entorpecido, porque, ao voltar-se, ficando de frente para ele, tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, mas sentia o mesmo, podia jurar. E sabia que ‘eu te amo’ era o que dissera, mesmo não sendo audível.

Olhos um do outro, marejados. Ali se encontravam verdadeiramente e sabiam que era amor. Os lábios tremeram. Ele queria dizer, mas não sabia bem como. Não achava forças porque o destino batia à porta. Ele os fechou e as lágrimas caíram. ‘Eu amo você’ parecia uma canção triste e solitária. Porque estavam eles dois como sempre estiveram.

Pedro o puxou para perto, num abraço e chorou silenciosamente.

— Pra sempre, Dani.

Sussurrou num fio de voz, bem perto, delicadamente e ficaram por um tempo, daquele jeito, muito próximos. Como se fossem um. As vidas inteiras resumidas naquele momento.

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Nota: Esse conto foi escrito para um desafio de escrita, em 2015. Já passou muito tempo desde então, mas creio que ele seja atemporal, afinal, o amor também não marca hora para acontecer. Boa leitura!

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