Oto – Miniconto

Créditos da imagem: Evelyn Postali

Oto nasceu em um dia ensolarado e chorou até anoitecer. Depois, pegava no sono pela manhã, ao nascer do dia, quando os pais, exaustos, atracavam-se no batente.

Amava as frutas e quando criança, sua mãe admirava-se com seu paladar, muito diferente dos filhos de suas amigas. O tal ponto positivo contrabalançava os hábitos noturnos.

A rotina da casa foi alterada em função do pequeno. O pai, encontrou um trabalho noturno e a mãe, adaptou-se às exigências tornando-se produtora de eventos, compatibilizando horários.

Com ouvido absoluto, iniciou-se na música. Transposições de harmonias, desarmonias, composições além do mais contemporâneo. O professor admirou-se e, tempos depois, o discípulo superou o mestre.

Em sala de aula, dormia ouvindo a professora e a dificuldade de aprendizado diurno foi superada com aulas extraclasse no vespertino e noite, onde sua genialidade expandiu-se e superou o tempo escolar normal, entrando precocemente para a universidade.

Apesar de recluso, ganhou amigos também ‘estranhos’ aos olhos da sociedade. Vestiam-se de preto, pintavam os olhos, tatuavam o corpo. Separou-se da família ao completar 21.

Oto desapareceu em uma noite, no verão de 69, na beira de um rio, perto de sua cidade natal, onde o grupo acampava. Dos relatos colhidos pelos investigadores, o mais estranho foi de Rúbia. A moça afirmou ter visto Oto ser alçado pelo bando de morcegos e sumir na escuridão da floresta. Mergulhadores estenderam as buscas para além dos limites possíveis. Policiais e grupos auxiliares percorreram a extensão da floresta durante uma semana ininterrupta. Cartazes com a imagem de Oto ainda podem ser encontrados nas delegacias da região e em publicações de familiares e amigos.

Histórias Fantásticas (7)

Cercado 3

Vasculhou as prateleiras aéreas. Encontrou biscoitos e pão. Abriu o refrigerador. Separou a carne, embalando-a em um recipiente de plástico. Depois, o queijo, em outro, e o leite. Várias caixas de leite. Juntou um dos guardanapos maiores e colocou dentro da cesta. Organizou os itens lado a lado. Abriu as portas do balcão debaixo e retirou algumas latas de conserva.  Abriu-as, colocando o conteúdo em outro pote. No dia seguinte, precisaria fazer uma visita ao supermercado.

A mãe, sentada à janela, recostada na cadeira estofada, segurava o cordão de contas e dividia a atenção entre o jardim multicolorido em seus desenhos labirínticos e a movimentação do filho. “Caprichoso”, sempre pensava, lembrando-se em como a delicadeza fazia parte da vida de Anton. Desde criança, em pequenas incursões pelos arredores, juntando coisas, analisando, fazendo experiências. Depois, adulto, os estudos mais complicados, o amontoado de livros, de vidros, de líquidos coloridos, seguindo os passos do pai.

O pai… O pai sentiria orgulho. Um filho inteligente, recluso, mas inteligente, dono de uma propriedade daquele tamanho, comprada com o trabalho de pesquisa realizado naquelas grandes corporações industriais. Ao vê-lo assim, homem feito, dono de uma pequena fortuna, sim, o pai encheria o peito e sustentaria o mesmo olhar altivo da época em que arrecadava reconhecimento pelas descobertas químicas.

― Eu não me demoro ― beijou-a na testa. ― Vou até o cercado 3.

― O cercado 3?

― É, mãe. Preciso alimentar os dinossauros.

Ela o segurou pelo braço e disse a única coisa que era possível dizer. ― Tenha cuidado.

O Mercador de Tapetes

“I am not from here
My soul came from the land of deserts, Date trees & Oasises
I can sense it in my love of watching golden red sun sets
In my longing for the endlessness
of the desert
For The Oasis & The lone veiled passenger wandering
to give his secret of alchemy to the Worthiest”

~ Hoorayen Fatima ~

“Moro ao sul do grande deserto, a leste do único e mais antigo oásis”, respondeu Amir para a criança, enquanto escolhia os panos vermelhos.

O comércio de algodão aquece a economia de Mázaca, uma cidade situada na rota dos viajantes e mercadores do mundo. Pinturas nas paredes, esculturas de barro, espelhos de obsidiana e baixos-relevos emprestam charme às ruas de chão batido, de panos nas janelas e toldos coloridos. A cidade se estende em uma planície verdejante, rodeada de colinas com florestas ao pé de um vulcão.

“É muito longe?”

“Mais de 8 luas, pequeno Damat”, respondeu o mercador.

Amir viaja duas, três vezes ao ano dependendo da demanda. Leva especiarias da sua região e volta com tecidos e tapetes. Sua caravana é pequena, composta por 10 camelos. O mais velho e mais bem cuidado; herança de seu pai.

“Pode levar o Peregrino com você?”, apontou para o homem a poucos passos deles. “Ele precisa chegar ao oásis e você é o escolhido.”

Amir analisou o homem de muita idade em vestes modestas segurando um cajado.

“Talvez seja bom trocar a companhia da solidão pela companhia de alguém.”

O garoto não esperou. Saiu em direção ao velho, recebeu algumas moedas e desapareceu pela ruela lateral. Amir aproximou-se do homem e cumprimentou-o com reverência.

“Sou Amir, de Sharurah, filho de Emir de Najram. Minha caravana parte antes do sol. Posso colocar seus pertences em um dos camelos.”

“Tudo o que carrego está aqui comigo”, e retribui a saudação, sou ‘Shaheen’.

No alvorecer, a caravana partiu. Amir seguiu na frente, seguido de perto pelo Peregrino. Foram 8 luas de pouca conversa. O mercador, acostumado com o silêncio, entendia que o velho poupava fôlego. Ora caminhando, ora sobre um camelo, a paisagem não mudava. Areia para todo o lado, um ou outro oásis para abastecer os cantis e matar a sede. Em todo o trajeto, Amir observou o falcão sobrevoar sua caravana. “Bons presságios, Shaheen” apontou para o céu e o velho assentiu. “Uma jornada tranquila.”

“Um caminho horado,” acrescentou o Peregrino.

No último oásis, perto da hora do pôr-do-sol, o Peregrino sentou-se ao lado de Amir, aceitando o cantil e servindo-se de um pouco.

“Está na hora de eu partir.”

O sol, descendo no horizonte, avermelhava a areia e o verde da vegetação ao redor do oásis dourava.

“Estamos perto da minha aldeia. Mais um dia e meio”, explicou o mercador, atiçando o fogo. “Poderá descansar em minha humilde casa e, depois, seguir viagem.”

Nos olhos do Peregrino, o brilho do sol e do fogo se misturaram. Era velho não só pela barba e cabelos brancos.  Estendeu seu bastão a Amir. “Um presente.” Amir o tomou para si. “Aceite.” E, do alto, o falcão soltou sua voz poderosa e rouca enquanto corrupiava. “Minha jornada termina aqui e a sua começa hoje, Amir, de Sharurah, filho de Emir, de Najram. Haverá dias de luta, de tornar o espírito forte, de fazer valer a Lei.” E dizendo isso, silenciou e fechou os olhos, como se meditasse. O falcão desceu do alto e assentou-se no ombro de Amir, deslumbrado pela presença da ave e completamente arrebatado pelo momento. E quando o deserto mergulhou no último raio de sol, a poeira ao redor de Shaheen ergueu-se e ele evaporou-se junto dela.

O Escudo de Nirmud – Miniconto

Créditos da imagem: Evelyn Postali

O Escudo de Nirmud

Naquele tempo, o reino era desmilitarizado, desprovido de exército e ganância. O único combate aceitável era o combate à fome que, em época de seca ou enchente, destruía os sonhos de uma sociedade justa e evoluída. Por esse motivo, as mãos de Nirmud plantavam os grãos, curavam os doentes, caçavam e escreviam as leis dos antigos. Nenhum outro cidadão tinha tanto prestígio quanto ele, o predestinado.

Foi difícil conviver com a guerra cósmica, trazida por exércitos desconhecidos, rasgando a terra e criando feridas profundas. Foi igualmente difícil ver seu pai e seus irmãos morrerem sob espadas faiscantes que jamais manuseara. Nirmud correu pela pradaria descalço, de mãos vazias, competindo com o vento e clamando pelos deuses de sua crença.

Então, caiu diante de um escudo cujas cores assemelhavam-se às chamas da forja e tão brilhante quanto as pedras reluzentes encontradas nos rios. Junto dele, uma maça, semelhante às clavas de madeira que seus ancestrais carregavam, mas diferenciada pelo material, tão reluzente quanto o escudo.

Os deuses haviam atendido seu clamor. Ele tomou o escudo e desceu para onde a luta acontecia. Não houve espada capaz de quebrar sua defesa; nenhuma arma capaz de macular seu corpo. Nirmud fez tombar os inimigos, um a um; sucumbiram diante dele.