Paredes Silenciosas

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“Todas as coisas têm fim. O mal do homem é pensar que pode ser eterno. Só eternizamos momentos.”

 

 

Alexandre Melo retornou da DH transtornado. Precisavam esperar pelo escrivão e o mandado. Patrícia Fraga viu o parceiro reclamar o tempo todo. Ela sabia com exatidão o que se passava na cabeça dele.

Encontraram a casa do pedreiro, porém não sabiam se Rosana Nogueira ainda respirava. A locatária identificou Rafael Soares, como seu inquilino. Abriu as portas de sua casa e da casa dos fundos para a busca e apreensão depois da explicação de Patrícia sobre o motivo de estarem aí.

A mulher, já nos seus setenta anos, precisou ser medicada. O nervosismo pela situação a fez gaguejar e acentuou a dificuldade de ficar de pé. Suas mãos tremiam, mal conseguindo segurar o copo com água.

— Vem uns caras para arrebentar a parede — o delegado informou, jogando o chiclete de um lado para outro. Caminhou pelo pequeno espaço consumindo as últimas fagulhas de ânimo.

— Quantas horas mais para ter uma maldita ordem judicial? O juiz, por acaso, sabe o que encontramos todos os dias nesse maldito trabalho?

— Os peritos recolheram todo o equipamento de vídeo encontrado — explicou a parceira. — Recolheram a impressora. Encontramos digitais, mas não sabemos se são das vítimas. Não há nada, nenhum objeto ou roupa além das que estão no armário e que, é bem provável, sejam dele. Precisamos conectar tudo para sustentar muito bem a acusação.

— E o jeito é fazer de acordo com a lei. Não dá para burlar isso, Alexandre — Monteiro tentou argumentar de forma serena. O medo, porém, mantinha-se firme ao lado de todos, cutucando as entranhas. Ao abrirem aquelas paredes, sabiam o que encontrariam. — O escrivão já deve estar vindo.

 

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— Já se passaram 15 minutos. Onde está a marreta? Onde está a equipe de demolição? Precisamos abrir essa parede!

— Controle-se! — Monteiro o xingou.

— Que merda!

Alexandre saiu do cômodo onde estavam para fora da casa dos fundos. Patrícia o seguiu. Já o conhecia o suficiente para saber que o nervosismo vencia o alento. Ele puxou um cigarro. Um dos vícios adquiridos ao longo da juventude. Controlava-se, mas o medo apertava seu pescoço.

— Precisa relaxar. Vai dar tudo certo — ela afirmou, lembrando-se dos anos de parceria. Já o vira em muitas situações complicadas, mas admirava-o pela competência. — Eu tenho certeza de que Rosana está viva. — A vida do parceiro era um amontoado de erros, fatalidades e desencontros, mas de uma coisa ela sabia: a vida profissional mantinha-se exemplar. Acertada. Ele era um excelente investigador, apesar de impaciente e ousado.

Ele tragou com força. Ela sorriu.

— O que foi? — ele perguntou.

— Algumas vezes me sinto o Grilo Falante. Sua consciência imediata, porque preciso freá-lo. Você tem tendências suicidas. — Ele tragou mais uma vez com a mesma intensidade e ela continuou: — Somos policiais civis. Agentes da lei. Precisamos seguir dentro dela, embora ela não nos favoreça em alguns momentos.

— Essa coisa de seguir rigorosamente a lei… — Encolheu os ombros. — Não dá brecha para nos movimentarmos de forma ágil — ele reclamou. — E não tem como concordar com o que o sistema tem organizado. Por causa do grande número de pessoas burlando as leis, temos a burocracia cavalgando na frente.

— Eu entendo, mas… — Foi interrompida pela chegada do escrivão, trazendo com ele a autorização. Junto dele também chegaram dois outros homens. Usavam capacetes brancos e uniformes. Traziam marretas.

— Finalmente!

Ele tragou com energia, jogou o cigarro no chão e pisou na bituca. Soltou a fumaça enquanto seguiu com os demolidores. A dona do imóvel recebeu o papel e as paredes foram derrubadas.

 

1
72 horas antes…

— É água. Bebe.

— É dinheiro o que você quer?

— Bebe!

Sempre me pergunto o motivo do dinheiro vir em primeiro lugar. Existe uma sociedade doente, aí fora. Uma sociedade que pensa que o dinheiro compra tudo. Roupas de marca, carros último tipo, tecnologia, segurança… Compra até segurança, dependendo de quem você é alvo. Mas o dinheiro não compra tudo. E é triste perceber, mas nem todos conseguem enxergar esse fato incontestável.

Não existe escapatória para pessoas desse tipo. Essas que pensam assim. É por isso que eu existo. Eu sou uma espécie de pastor de almas. Ensino pela dor da perda.

— Meu pai tem dinheiro. Pode pagar o resgate.

Um metro quadrado, às vezes nem isso. Sem saída. Sem janela, nem porta. Um cubículo de paredes de tijolos preenchidas com capricho. Um tijolo em cima do outro, intercalados. Argamassa, tijolo, argamassa. De cor laranja vivo, feito fogo, ou vermelho, feito sangue, para se lembrarem do que são feitos. Para se lembrarem de que tudo morre. Tudo. Todos. Sem exceção.

— O que acha de umas fotos? Os olhos são o espelho da alma.

— Por que está construindo essa parede?

— Deixa eu ajeitar o seu cabelo. Assim…

— Se me soltar, posso dar o que quiser.

— Como fez com aquele rapaz, atrás da construção da piscina?

— Como sabe? Quem é você?

Eu me coloco à frente e aproximo o zoom.

— Está vendo? Encontrei a câmera digital perfeita. Ela se acopla à impressora.

— Por que não liga para o meu pai? Não vai pedir resgate?

— Morde esse lenço.

— Por que está fazend…

— Melhor poupar seu fôlego. Preciso terminar a parede.

Os grunhidos não me afetam. Gosto da agonia do olhar. Aquela agonia de não poder gritar ou perceber que não será ouvido, por mais que se debata ou se desgaste. É tudo uma questão de tempo.

E o diário… O registro em meu diário deve ser preciso. Todos os detalhes são preciosos. Porque o prazer deve permanecer muito depois de tudo pronto, depois do tempo passado, quando eu releio e saboreio minhas vítimas eternizadas com minhas palavras.

 

 

Eu construo as paredes devagar. Os primeiros tijolos já foram assentados. Como as outras, ela não sabe onde está e não sabe o propósito de tudo isso. Os olhos têm brilho, mas ainda não expressam o terror. Quando toda a parede subir e houver apenas o furo de um único tijolo na direção de seu olhar, então, sim, haverá um espetáculo de emoções.
Cada uma é um projeto individual. Cada pessoa carrega em si as particularidades que mostram para mim qual área desenvolver. Algumas são fotogênicas. Outras, não.

 

 

Patrícia e Alexandre saíram da DHPP para atender ao chamado do delegado Monteiro. Outra mulher desaparecida.  Mais um vídeo deixado como pista. Mais uma morte anunciada. Estavam perdendo o controle.

Chegaram ao local quase uma hora depois da chamada. Sirene abrindo caminho. Luzes piscando. Moravam no inferno.

— Demorou! Qual é?

Antônio Carlos Monteiro estava parado perto do enorme portão e reclamou direto com Alexandre. Não entenderam de imediato o motivo da presença dele e não viram repórter algum. Bom sinal: o caso ainda não havia sido noticiado.

O parceiro e o delegado divergiam com muita frequência. Mantinham uma relação de amor e ódio abafada pelos casos resolvidos. Todo mundo sabia. Monteiro cumprimentou Patrícia acenando com a cabeça. Como sempre, não quis conversa com ela. Puro machismo, ela sempre pensou, mas o parceiro atraía confusão e, havia grande possibilidade do chefe querer garantir que nada saísse do controle.

— Faz tempo que estou esperando, Alexandre.

A voz arrastada denunciou o cansaço. A manhã apenas tinha começado e o desconforto de perder a última hora de sono devia estar lhe batendo nos nervos. Para o delegado, um sujeito tranquilo, mas com extrema rigidez quanto aos horários, estar em uma cena de crime àquela hora, significava ter aberto mão da tão adorada rotina. E todo mundo tinha noção do poder da rotina.

— Foi o trânsito, senhor. É uma droga. Mesmo agora, pela manhã.

Alexandre não costumava usar a senhoria, mas quando sentia-se desprovido de bom humor… E isso acontecia com frequência. Patrícia já conhecia de cor os pormenores. A bem da verdade é que eles já se conheciam o bastante. Longe das vistas dos colegas tinham um entrosamento esporádico, quando a vontade suplantava a razão.

— Vamos entrar. Ele nos deixou outro presente — o delegado referia-se ao assassino procurado há mais de um ano.

Monteiro os levou para dentro da residência luxuosa.

— Este é meu amigo, Nogueira, pai de Rosana. — O chefe apontou: – Esses são os investigadores Alexandre Melo e Patrícia Fraga.

Estava explicado: o delegado conhecia a moça desaparecida. O pai, um amigo de longa data, era de se supor. Monteiro já ocupava aquele cargo há tempo suficiente para conhecer cada particularidade da cadeira onde sentava. Tinha uma rede de relacionamentos bastante peculiar e poderosa.

— Eu a deixei em casa na terça à tarde – o homem explicou. Recolheu da pequena mesa redonda da entrada um envelope. – Tinha uma reunião.

— E não a viu ontem?

— Não. Quem a viu por último foi Lúcia, na terça-feira.

— Quem é Lúcia?

Alexandre começou devagar. Poucas perguntas, na maciota, mas por dentro, ruminava hipóteses ao longo das observações silenciosas. Bastava perceber seus olhos inquietos, espertos, ligados nas expressões, nos gestos.

— Nossa empregada. Ela sai no final da tarde, depois de preparar o jantar. Na quarta-feira eu cheguei tarde, mas não me preocupei em procurá-la. Na terça ela me ligou na empresa, deixou recado dizendo que ficaria na casa de uma amiga. Eu estranhei. Ela poderia ter me dito à tarde, quando a deixei aqui, em casa.

— Sabe o nome dessa amiga?

— Liguei para todos os conhecidos. Ninguém a viu. Ninguém sabe dela.

— Recebeu algum telefonema, senhor? — Patrícia perguntou enquanto Alexandre recebeu o envelope das mãos de Nogueira.

— Nada. Nenhum pedido de resgate. Esse envelope nada tem de minha filha. Eu não entendo…

O investigador colocou as luvas e abriu o envelope. Sacou de dentro um cartão SD, mostrando-o para a parceira. Devolveu-o para dentro e retirou as fotografias. Olhos, bocas, orelhas. A policial desviou-se das imagens observando os reflexos no piso. O estômago se revolveu. Por mais acostumada, nunca conseguia se manter impassível diante de imagens mais violentas.

— Ele não as toca, mas é como se as tivesse violado em cada imagem. — o investigador pontuou em voz baixa para a parceira, recolocou tudo dentro do envelope. — Talvez possamos obter alguma impressão. — Sempre havia fotografias dos pertences, do que carregavam consigo quando raptadas. E imagens de paredes de tijolos, em várias etapas de construção com elas dentro, amarradas.

— Talvez…

— Vamos dar uma olhada perto da piscina, Pat.

Alexandre sinalizou com a cabeça para ela o seguir e ela sentiu-se aliviada por não precisar encarar mais fotografias, sequer reclamou.  Patrícia não queria vivenciar o mar de perguntas daquele pai desesperado querendo saber quando teriam notícias do paradeiro da filha. E quando soubesse o pior… Porque ainda viria o pior.

 

2

A senhora me espera na janela. Sempre na mesma hora, como se soubesse. Não faz nada senão observar a rua, conversar com os moradores mais próximos e tentar adivinhar se chove ou não. Minha sorte: não é bisbilhoteira. Curiosa, mas não a ponto de ultrapassar os limites.

— Como foi seu dia? Terminou cedo.

— Muito bom, senhora.

— Eu vi que chegou bem tarde, ontem.

— O serviço pedia alguns retoques. Então, fiquei fazendo algumas horas-extra.

Ela debruça-se sobre a janela, impedida pela grade de ajeitar-se de forma confortável e me acompanha com parcimônia, esticando a cabeça.

— Pode aproveitar que chegou cedo, hoje, para descansar um pouco mais. Vai deixar o carro do outro lado?

— Eu não vou ficar. Começo a trabalhar em uma obra grande ainda hoje.

Sigo para a moradia no terreno dos fundos, uma casa de três cômodos carecendo de consertos. O beiral está podre, mas o quarto é grande e pode abrigar vários cubículos. Três já preenchidos. O quarto, pela metade.

 

 

Não preciso ir longe para encontrar na periferia um lugar perfeito para minhas construções. Os quartos existem aos montes. Os proprietários se importam com o dinheiro fácil. Alugar um cômodo ou uma casa aos pedaços para alguém que pague adiantado não parece estranho. Eu sou silencioso. Ninguém me escuta trabalhar.
Esse quarto ainda vai abrigar mais cinco.

 

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A piscina quase incomodava de tão limpa. As cadeiras brancas, arrumadas, também.

Vasculharam a área com minúcia. Cada palmo do entorno, perto das cercas, na churrasqueira. Nenhum indício, nada. Mas já sabiam. Tinham pouco tempo para encontrar a moça.

Patrícia ficou parada, olhando para as coisas.

— O que tanto pensa, Pardal.

Ele a chamou pelo apelido. Uma forma carinhosa, no entendimento dele, mas ela não gostava. Tolerava. A intimidade entre eles não a incomodava e ela sabia da ansiedade do parceiro. O apelido aparecia quando a preocupação tomava conta e ele procurava aliviar a tensão brincando com ela.

— Bobagens.

Ele não insistiu. Deu uma volta na piscina. Olhou para a casa. Percorreu o muro coberto de hera e voltou até ela.

— Ele entrou por lá – ela afirmou, apontando a saída dos fundos.

— Ele já a tinha visto, Pat. — Ele agachou-se próximo da piscina, passou a mão na superfície da água. Olhou mais uma vez para a residência. Secou a mão na calça. — Pode ter sido na faculdade. Pode ter sido no shopping. No cinema. — Depois o peito se encheu e soltou o ar de forma barulhenta. — Ele sempre escolhe e conhece quem escolhe? Ou é aleatório?

— Nunca chegamos a lugar algum com isso. Essa moça é bem diferente da última desaparecida. Ela não mora na periferia. Olhe ao redor e compare com algumas das vítimas. Não é isso que o faz escolher. — Ela não dizia qualquer inverdade — Nunca chegamos perto de pegá-lo. Ele escorrega por entre os dedos. Nenhuma pista, nada.

O delegado se aproximou junto do pai da moça desaparecida.

— Qual a sua opinião, policial Melo?

O homem mais parecia buscar alento e não uma resposta lógica. Se ele respondesse calcado no que tinham, a probabilidade do desespero tomar conta do empresário era grande. Quem não esperaria esperança em um momento tão estranho e terrível quanto aquele?

— Ele pode tê-la vigiado durante dias – respondeu de forma sincera, mas o fato não levava a lugar algum.

— Como assim?

— Ele estudou muito bem o lugar. Sabia como entrar. Sabia dos hábitos de sua filha.

— Do que estamos falando aqui? Ele conhecia minha filha?

Alexandre olhou para Monteiro, a sobrancelha erguida. Os policiais conheciam o significado de tudo aquilo.

— Sr. Nogueira… — Alguém deveria explicar para ele, contar o que acontecia naquela cidade gigante e cheia de gente maluca. — Estamos lidando com um série de desaparecimentos. E é bastante provável que esse seja mais um. — Deu um tempo para ver se o homem dizia algo e continuou: — O envelope deixado nos dá certeza de estarmos lidando com um serial killer.

O homem empalideceu de forma rápida, perdeu o equilíbrio.

— O quê? — O homem olhou para Monteiro. — Do que ele está falando?

— Estamos lidando com um homem de aproximadamente 50 anos, branco, bem apessoado. Sua filha teve algum contato com alguém com essa descrição básica? — ele prosseguiu.

— Minha filha é jovem. Anda com jovens — ele gaguejou. — Você falou em assassino em série. Minha filha não pode… Ela não…

— Ninguém falou sobre sua filha ter sido assassinada, senhor. — Alexandre pigarreou. — Mas as coisas deixadas fazem parte do modus operandi de um assassino em série que perseguimos.

 

3
48 horas depois…

A periferia apresenta alguma tranquilidade. Ruas pouco movimentadas de carros, pessoas apressadas, mas menos caóticas. Muito diferente dos centros comerciais onde o barulho constante de motores e gente e buzinas compõe uma sinfonia constante, quase homogênea e de uma dor sem tamanho, que não se dissipa com facilidade. Os ruídos do frenesi capitalista não somem das ruas adjacentes. Apenas quando se beira as veias marginais é que se percebe a calmaria.

— Amanhã você será manchete nos jornais. Rosana Nogueira: Desaparecida. Vai estar nas bancas. Mas você não é nada, não é uma manchete. Você é só mais uma.

O barulho dos centros urbanos é igual às drogas. Fica impregnado. E quando some, por breve que seja o tempo, sente-se falta de algo. Não se sabe bem dizer, mas falta um preenchimento costumeiro. Fica-se num vazio. É como se perdêssemos parte da identidade adquirida.

— Já viu como secou rápido? Eu não vou cobrir logo. Quero olhar para você um pouco mais. Mais um dia. Quem sabe dois. Ver você definhar.

Os cubículos são pequenos paraísos, se pensar sob essa ótica do caos. Quando se está dentro deles, tudo é silêncio. Um casulo de nada. Puro isolamento. Um amontoado de temores, faltas, pecados. A loucura materializada.

— Não se preocupe. Não vai sentir a minha falta durante o dia. Vou fazer você dormir para poder estar acordada à noite. Está confortável?

 

 

“Um quarto significa mesmo solidão, no final das contas. É um lugar onde todos se recolhem do mundo. Uns querendo fugir. Outros querendo encontrar-se. Nenhum corredor, nenhuma parte de qualquer labirinto se equivale a um quarto. Nada. Apenas aquele espaço quadrado envolvendo o ser e que tira, aos poucos, toda a lucidez. Porque quartos são lugares tenebrosos. Escuros, feito a alma da noite e do sono de quem quer fugir no sonho. Que outro lugar poderia ser pior aos cubículos onde escondemos nossos desejos mais caóticos? Que outro lugar nos tira do caos e nos lança no nada? Que outro lugar guarda tantas lembranças e, ao mesmo tempo, faz-nos esquecer de tudo? Quartos de pensão, quartos de hospício, quartos de bordel.
Os sons nunca atrapalham, mas o silêncio é abençoado. As paredes prendem os gritos. É aterrador, não fosse glorificante ouvir os gemidos e pedidos de socorro indecifráveis. O choro preso aos tijolos, incapaz de ser escutado do outro lado. Os nomes, as palavras, as promessas. As indagações. Tudo sendo engolido pela escuridão, pelo nada.
Quanto mais abandonado o bairro, quanto menos movimentada a rua, o beco, enfim, mais dentro do que quero se torna o espaço. Não me importo com os marginais ao redor. Nem com as prostitutas. Todos, um dia, serão úteis. Todos podem servir aos meus propósitos. Não sou seletivo. Gosto de pensar assim. Sou generoso e oportunizo a todos um final extasiante, digno de uma grande história. O prazer de esculpir destinos, de reescrevê-los… Ah… O prazer…”

 

 

— Sempre penso na cidade como um ponto de encontro. Lógico. De despedidas também. Porque tudo na cidade é passageiro, não é? Tudo nela urge. Todos carregam uma urgência sem precedente.

— Vai filosofar, hoje, Pat?

— Escute isso: “O tempo é diferente. O tempo dói. Ele é culpado pela velhice, pelo esquecimento.”

O policial apertou as mãos no volante.

— Ele deixou escrito atrás de uma fotografia. Não creio que ele seja um homem de curso superior, mas tampouco um analfabeto. O que ele escreveu… — ela balançou a cabeça, jogou o papel de volta para o envelope. — Estamos batendo de frente com o tempo. Com o maldito tempo. E estamos com pressa, aquela percebida nos passos apressados das pessoas, nas ruas, por onde formos. Ele sabe disso. E essa é nossa falha. Estamos com pressa.

Os anos de parceria tinham deixado a relação entre eles eficiente. Estranha, mas eficiente. Eles estavam preparados para todo o tipo de investigação. Da mais simples até a mais complexa. A solidão de dias e noites debruçados na elucidação de fatos aproximara-os de uma forma conveniente.

— Eu tenho certeza: estamos muito próximos, Alex. Só precisamos encontrar o ponto.

Ele bufou. O delegado pressionava. As coisas ficavam piores. Ele dirigia inquieto.

— Das cinco primeiras vítimas, nenhuma mesmo têm relação com qualquer outra — ele retomou os apontamentos. — Se voltarmos para o ano passado, o que temos?

— Temos cinco mulheres de idades diferentes.

— Ele desapareceu por um tempo. Não temos um motivo, temos? Talvez porque não tivesse mais lugar para emparedar. E agora voltou. O que o fez voltar, Pardal? Encontrou um lugar maior?

— Temos mulheres diferentes, Alex.

— Ele vai completar a contagem de cinco? Idades que se aproximam?

Patrícia abriu o laptop. Acessou os dados arquivados enquanto ele dirigiu de volta para a delegacia.

— 35, 59, 24, 28, 70, nessa ordem. E agora: 32, 41, 22.

— É estranho. Existe uma ligação entre elas além da estabilidade de vida, não é? Tem que haver. Nós estamos falhando e eu não sei em qual parte.

Ele buscava qualquer faísca de solução. Ela vistoriava o que já tinham revisto mais de uma dezena de vezes.

— Advogada, dona de casa, estudante, dona de casa, secretária aposentada.

O sinal fechou.

As pessoas olhavam para a viatura.

— É sempre possível perceber uma culpa e uma escusa nos rostos dos passantes, como se houvessem cometido crimes e buscassem um perdão inconsciente. A cidade esconde a identidade das pessoas. É um grande labirinto.

— Olha quem está filosofando agora.

Um grupo de adolescentes passou raspando pelo carro. Um deles bateu com as mãos no capô. Alexandre buzinou prolongado.

— As três últimas com recursos financeiros também — ele voltou para o caso.

— Exato. Em pontos bem afastados uma da outra.

— Sabe o que mais me aborrece?

O sinal abriu.

— Muitas mulheres desaparecem nessa cidade. Mulheres pobres. Mulheres da vida. Mulheres comuns. Invisíveis. São engolidas.  — Vez ou outra, ele acabava refletindo sobre o caos de São Paulo. — Ninguém sente realmente a falta, a menos que seja próximo. Ninguém se preocupa em anunciar, em divulgar. A polícia não tem ajuda. Mas quando se trata de algo assim, é diferente. Essa quebra do comum, daquilo estabelecido como banal… Isso provoca nas pessoas uma reação diferente.

Patrícia entendia bem aquilo tudo. Ele falava de algo palpável. Aquele acostumar-se com as mortes, com os desaparecimentos, com as tragédias diárias. Aquela falta de surpreender-se, de lutar contra. Aquele deixar-se levar. Não se importar, não discutir, não compartilhar, doía menos. Passar por cima doía menos. Ela entendia, mas não deviam mergulhar na paranoia.

— Ele usa a tecnologia a seu favor. Não é um ignorante, Alex. — Voltar para os dados assemelhava-se a um paliativo para ela. — Ele sabe manusear celular, computador. Tem acesso a isso e sente-se confortável em usar.

— Tem boa lábia — ele concluiu. — Ele alugou o último espaço sem precisar fazer esforço.

— Ele deve ter estudado. Ter algum conhecimento. Mas ele precisa ter um trabalho regular para se manter.

Ele estacionou.

— Como ele carrega as mulheres com ele? Por que ninguém percebe, ninguém vê nada? Como ele as leva para os lugares sem haver qualquer pergunta? — ela fazia as mesmas interrogações e elas continuavam a martelar. — Ninguém relatou qualquer tipo de furgão.

— Nós temos pouco tempo para encontrá-lo, Pardal. Antes que desapareça com mais uma, e outra, até ligar para nós indicando o lugar como no ano passado.

— Na primeira vez… Quando encontramos as cinco… Acha que parou mesmo por falta de espaço? Eu quero dizer… Acha que ficou nas cinco porque não tinha outro cômodo para emparedá-las?

— Acha que o número cinco não é aleatório? Pode ser apenas um número. Eu tenho a sensação de que, se ele tiver espaço, o número de vítimas cresce.

— Não vamos deixar isso acontecer, Alex. Vamos encontrá-lo antes.

 

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Na delegacia, depois de mais uma hora no trânsito, os investigadores recolheram as fotos espalhadas sobre a mesa e as ajeitaram no mural. Alexandre mencionou a sensação de ter perdido algo em algum momento porque, segundo ele, as pistas se encontravam nas fotografias, mas estavam cegos para perceber.

— Temos a contagem de quatro, agora.

O castanho esverdeado dos olhos do policial clareava e escurecia dependendo do humor. Estava de pé, em frente ao quadro onde havia retratos das outras vítimas.

— Já perdemos nove no total.

Ele referia-se ao primeiro grupo de cinco mulheres, ao primeiro lugar, encontrado através de uma ligação do próprio assassino, e às três anteriores à Rosana.  Cinco mulheres no ano de 2015, todas presas em cubículos de um metro quadrado, num quarto na periferia alugado. E três mulheres ainda desaparecidas.

— Não aumente a contagem. Ainda podemos encontrar Rosana com vida — Patrícia retrucou incerta de sua própria capacidade na análise das pistas.

Tinham o retrato falado, desenhado a partir dos relatos do dono da casa alugada em 2015, mas nada além daquilo, e sem muita certeza. Nenhum nome certo, nenhum dado concreto. Apenas os corpos e as poucas conclusões às quais chegaram, depois de muitas conversas com a psicóloga que os auxiliava a ‘traduzir’ o psicopata.

— Você mesmo disse: temos pouco tempo. Não podemos pensar nisso como um quebra-cabeça insolúvel. O assassino joga as imagens, nos deixa pistas para encontrar o cômodo. Ele vai cometer um erro. Se já não cometeu. Só precisamos olhar com outros olhos.

Alexandre se posicionou em frente ao quadro.

— Não faz muito sentido, não é?

— O que quer dizer, Pat?

— Temos um amontoado de mulheres mortas, desconhecidas entre si. O primeiro grupo, encontrado no ano passado. Um mês de diferença entre uma e outra. E agora, isso.

— Que explicação teria para a ação de um sujeito feito ele? Por que prender as mulheres num cubículo? — Podia-se ver o peito, enchendo e esvaziando, o sentimento de impotência engolindo cada momento de lucidez.

— Já vasculhamos os arquivos e não encontramos coisa alguma parecida com isso. Ele não está tentando imitar ninguém – Patrícia respondeu. — Isso já sabemos. A doutora já traçou o perfil do nosso malvado como sendo alguém contumaz e lúcido. Temos um homem branco, segundo ela, de uns cinquenta anos a observar a meticulosidade da ação, organizado, com traumas de infância, possivelmente com raiva de mulheres, nervoso e perverso, mas não impulsivo.

— Por que ele surgiu somente agora, depois de oito meses? Sempre em maio.

— Tem a ver com a mãe? A mãe está viva? Ou morreu de forma trágica? Ou morreu cedo demais?

— E se antes ele usasse outro método? E se há outras vítimas… desconhecidas? O que provocaria uma mudança de método? Pense Pat.

— Evolução? Intensidade nos sentimentos? — Patrícia acrescentou suas dúvidas e hipóteses. — Se a doutora traçou um perfil de homem de meia idade, ou quase, onde ele ficou esse tempo todo? E o pai? E se ele estiver se vingando? Se isso tudo for uma vingança? — completou, mesmo sabendo da impossibilidade de responder. — Ele vai parar na quinta e depois, o quê? Retornar no ano que vem?

— E se ele for mais novo? E se esse dado estiver errado? Ele pode ter dado início a essa ‘vingança’ a partir da morte da mãe.

— Tudo é possível. Ela não deu certeza absoluta.

— Quer arriscar o banco de dados das prisões? — ele bufou, meneando a cabeça.

— Podemos começar com os sanatórios. Sanatórios também são prisões. A doutora mencionou a possibilidade de ele já ter sido preso. Isso seria de grande ajuda. Mas podemos verificar as prisões, quem fugiu ou cumpriu pena, mas o que, especificamente, estamos procurando? Não temos muita referência além de ele estar bancando um pedreiro?

— É isso, Patrícia! É exatamente isso, Pat! Um pedreiro! Ele é, de fato, um pedreiro. Ele não está apenas fazendo o trabalho de um pedreiro. Ele é um pedreiro.

Patrícia fechou o cenho, confusa.

— Do que está falando?

— Ele não está bancando um pedreiro. Ele é um pedreiro ou alguma profissão ligada à construção civil. Verifique cada uma das vítimas. Cada uma delas deve ter pedido por algum conserto dentro de casa. Algo com respeito à construção e que não percebemos porque elas não se encontravam dentro de casa quando foram levadas.

— Considere feito, mas como ele carrega os tijolos para dentro sem alguém notar? Não é possível construir paredes dentro de casa sem que alguém perceba.

— Não sei, Pat… Não sei. Ele deve ser muito esperto. Ter boa lábia.

— Tantas perguntas sem resposta…

— Vamos voltar pra casa dos Nogueira. — Ele arrancou o casaco do espaldar da cadeira e saiu porta a fora. — Junte as coisas! — Gritou do corredor. — Vai ligando pelo caminho.

 

4

Lá vem o mestre de obras. Eu não me importo com ele, apesar da exigência, gosto de como ele se preocupa com a ordem das coisas. Um sujeito é ordeiro é um sujeito alinhado com o progresso da profissão. É por isso que se vai bem nessa vida.

— Já terminou o reboco daqui, Soares?

— Falta um pedaço, chefe.

É um sujeito tranquilo. Gente boa. Não quer saber da vida dos funcionários fora da obra, mas é exigente. Nada passa despercebido.

— Depois cê sobe. Tem o João no terceiro. Precisa dar uma mão para ele. Se não, não terminamos nunca.

— Claro.

— Tem que liberar aquela área pro encanador e pro eletricista.

— É pra já.

— Tenho um serviço lá em casa pra você, quando tiver um tempo livre. Pode ser no final de semana.

— Claro. Pode ser.

— Eu aviso você.

— Tá bem.

Ah… O destino… Quem sabe esteja colocando em minha frente a próxima convidada.

Quando eu chegar em casa, farei o último retoque na parede.

 

 

“Não gosto da sujeira ao redor dos prédios. Não gosto da sujeira porque faz eu me lembrar da imundície humana. A degradação de almas, a decadência de sonhos. Tudo na vizinhança se compõe em desarmonia: o saco plástico fora do lixo, a garrafa quebrada, pedaços de roupas espalhadas. Animais abandonados, restos de comida, pedaços de papel, papelão. Quem é que se importa com o que está por trás de tudo? A sociedade que me considera abominável, mas não me enxerga verdadeiramente.”

 

 

Ao chegarem à casa dos Nogueira, encontraram o pai desolado, sentado na parte de fora. Apesar de entenderem a emoção gerada pelo momento, não podiam dispensar a averiguação de novos fatos, antes não questionados. Solicitaram a presença de Lúcia, a empregada.

— Aconteceu alguma reforma aqui? A casa foi frequentada por algum pedreiro, mestre de obras, encanador?

A doméstica deu um passo à frente, prestando atenção à conversa. Esperou a vez de ser interrogada.

— Fizemos uma reforma na área da piscina, onde fica a churrasqueira — respondeu o homem. — Por quê? O que isso tem a ver com o desaparecimento da minha filha?

— Quem veio fazer o serviço? O senhor o contratou? Como é que foi?

— Eu o chamei através de uma plataforma online. Pedreiros especialistas. Ele trabalhou direito. E a Lúcia disse já o ter visto no bairro onde mora.

Os policiais entreolharam-se.

— O que tem o pedreiro a ver com o desaparecimento de minha filha?

— Estamos levantando todas as hipóteses, Sr. Nogueira — respondeu com calma, sem euforia. As informações precisavam ser mantidas em sigilo, mesmo tendo urgência. Não queria nada dando errado a partir da nova descoberta.

— Vamos precisar do nome dele, senhor — Patrícia se pôs mais à frente.

— Claro. Eu vou até o escritório. Devo ter anotado em algum lugar.

— Precisamos manter sigilo sobre isso, senhor — ela acrescentou, com medo da faísca de esperança se apagar.

— Claro, claro — ele concordou e apressou-se em sair. — Não demoro.

— Então, Lúcia… — Alexandre sorriu para ela. — Esse homem que veio fazer a parede… Pode nos dizer como ele era? Tipo físico, roupas… O seu patrão disse que você acha que o viu em seu bairro. Como o reconheceu?

— Pelo carrinho, mas eu não sei onde ele mora. Só vi de longe, na descida do armazém.

— Coincidência.

— Ele deve morar perto do armazém — ela gaguejou.

— Ele conhece você? Viu você aqui? Ou lá, onde mora?

— Aqui? — ela cruzou os braços. Mantinha-os próximos do ventre de um jeito que os ombros pareciam ter metade do tamanho de tão tensos. — Aqui, sim. Eu ficava de olho no trabalho. Sabe como é? — Ela se virou em busca do patrão que se aproximava. — Um sujeito estranho. Ele não falava muito. Nem cantarolou.

— Pode descrevê-lo? Cabelo, cor dos olhos?

Antes de ela responder, Nogueira chegou segurando um papel.

— O nome dele é Rafael Soares. E eu só tenho o número da plataforma. — Estendeu uma folha de papel com os dados.

— Como é esse Rafael, Lúcia?

— Não deu pra ver muito direito. Cabelo escuro, igual ao meu. Bem curto. Ele é alto igual ao senhor e forte. Ele tem um carrinho para as ferramentas, daqueles quadrados de metal. Daqueles pesados.

— Uma carriola? — Patrícia tentou ajudar.

— Não. É meio quadrado.

— Retangular — ele a corrigiu.

— É. Como aqueles dos picolés, mas bem maior.

A doméstica descreveu o carrinho, com gavetas, rodas pequenas, resistente.

O policial esboçou um meio sorriso e Patrícia não precisou de esforço para entender que o carrinho poderia carregar uma mulher, para ajeitar alguém encolhido, de cócoras. Uns sessenta centímetros de largura e profundidade. As gavetas poderiam ser apenas de enfeite. Tudo parecia possível.

 

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Saindo da casa dos Nogueira, Alexandre ligou para a delegacia solicitando busca por qualquer informação sobre a plataforma de serviços e Rafael Soares. Também solicitou reforços para circular pelo bairro onde a doméstica morava.

— Quero alguém investigando essa dita plataforma — ele bufou ao telefone. — Quero alguém lá, na sede dessa empresa. Quero endereço, nome, foto, tudo.

Nem um, nem outro, acreditava haver algum registro do sujeito, mas precisavam tentar. O assassino era uma presença silenciosa. Muito provavelmente, sem passagem pela polícia e utilizando nome e identidades falsas.

Dirigiram-se para a DH com as sirenes ligadas, abrindo caminho como podiam. Ora nas vias principais, ora saindo para as secundárias, evitando os congestionamentos.

— Precisamos de um mapa — ele apertou as mãos no volante. — E um pouco mais de sorte — completou.

 

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O delegado designou policiais à paisana para auxiliarem na procura. Nada de camiseta com símbolo da polícia civil, nada de jaquetas escuras. Deveriam redobrar a atenção, pois buscavam um homem comum e isso poderia confundir o olhar. Monteiro garantiu apoio total. Carta branca para os investigadores.

— Encontrem Rosana — disse de forma dura e em voz alta.

Os policiais misturaram-se aos moradores em uma grande área ao redor do armazém. Pouco experientes em se disfarçar, em desaparecer na multidão, Alexandre e Patrícia permaneceram mais próximos do estabelecimento comercial visado. De mãos dadas, como um casal apaixonado, circularam pelas ruas, observando as ofertas dos ambulantes, as vitrinas, disfarçando na procura. Tinham a casa da doméstica como referência e ponto de encontro, e menos de 24 horas para encontrarem a garota.

— Podemos circular até tarde.

Ele se dispunha a varar a noite e ela a seguir com ele, sem dúvida. A ideia de pessoas presas em quatro paredes, sem ar, sem luz, causava a ela um mal estar indescritível. Patrícia apertou a mão do parceiro, sentindo um tremor nas pernas e o estômago apertar ao avistar o pequeno furgão estacionar e o homem puxar de dentro um carrinho semelhante ao descrito pela mulher. O sujeito, vestido de uma calça jeans e camiseta escura escondia-se debaixo de um boné.

— É ele… — ela sussurrou.

Alexandre a puxou por reflexo e deu sinal de querer pegar a arma. Ela o segurou e o puxou para perto, beijando-o sem aviso, disfarçando a vigilância.

— Precisamos esperar para saber onde ele mora — ela o advertiu ainda com a boca presa à sua.

— Não temos tempo.

— Mas precisamos.

Nessa hora, o sujeito fechou a porta da carroceria. Atravessou a rua de olho no casal e, num piscar de olhos deu início a uma corrida, rua a baixo, em direção da avenida.

— Merda!

Alexandre disparou num átimo. As pernas tentando vencer a distância entre ele e o suspeito.

— Para! — advertiu, ainda correndo rua abaixo. — Polícia!

Patrícia desceu junto, logo atrás, seguindo-os através do trajeto, desviando das pessoas, dos carros mal estacionados, entrando em pequenos becos, voltando para a rua.

Perto da avenida, Alexandre pulou em cima do fugitivo. Desequilibrou-o ao puxar parte da calça, perto do calcanhar, caindo junto com ele. A investigadora chegou pouco depois, apontando a arma e respirando ofegante, apertando os olhos, curvada, tentando se recompor da corrida.

— É a polícia. Parado! — gritou, quase engasgando. — Mãos na cabeça.

As pessoas se esgueiravam, escondiam-se dentro das lojas. A rua ficou vazia e silenciosa. Aos poucos, Patrícia se recompôs e a nitidez voltou. Os vultos se desenharam como silhuetas mais definidas. Mulheres, homens… Todos se juntando ao redor.

Alexandre levantou-se e ergueu o sujeito.

— Coloca as mãos pra cima, atrás da nuca! Vira devagar, vai pra perto da parede, aí — empurrou-o para a parede pintada de um verde desbotado, próxima de uma loja de vestuário.

Um dos policiais à paisana aproximou-se, alertando os demais colegas.

O reforço apareceu com o delegado Monteiro e mais duas viaturas, quinze minutos depois para levar o suspeito.

— Pardal, você fica e ajuda a averiguar a área perto do furgão. Vê se encontra o cativeiro. Eu não vou demorar. Precisamos de um mandado judicial.

 

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A sala de interrogatório tinha sofrido mudança. Ainda cheirava a tinta fresca, com móveis novos, etiquetados com número de série. Alexandre apoiou-se no espaldar da cadeira com tanta força que o branco das mãos contrastava de uma forma gritante com a madeira escura.

O sujeito à sua frente, algemado, ladeado por dois policiais, encarou-o de maneira serena. O lábio ergueu de leve, a indicar o desdém com a situação na qual se encontrava.

— Tem noção do que vai acontecer com você?

Puxou a cadeira e sentou-se.

— Nós vamos encontrar seu esconderijo e derrubar aquelas paredes.

O silêncio irritou o investigador, mas sabia que, por hora, necessitavam da confirmação de quem ele era.

— Você já era. Temos provas. Testemunhas… — o policial conteve-se. — Está tudo acabado para você. Eu só estou aqui para me certificar das formalidades.

— Eu não contaria muito com a Justiça, investigador Melo. Ela já pode estar morta.

Ele sabia que o assassino referia-se a Rosana e levantou-se da cadeira, inclinando-se para frente, ficando mais próximo.

— Eu disse: testemunhas — viu o semblante de Rafael mudar. — Do que está rindo?

— Não é uma vitória, investigador Melo. É mais uma morte em suas mãos.

— Você vai apodrecer na prisão.

— Até eu sair por bom comportamento.

— Você não vai sair. É um assassino frio. Não vai se safar.

— O sistema falha o tempo todo.

— Mas não vai falhar com você. Vamos garantir que apodreça, e isolado. Isso se não acabar sendo morto por algum outro preso. O pessoal não gosta de gente como você.

— Eles têm medo de gente como eu.

— Duvido muito.

— Eles têm medo porque não conseguem matar por prazer. Pelo prazer de entender a dor, a morte. São ignorantes. — Rafael fixou o olhar em Alexandre. — Acho que, no fim, eu vou me dar bem no meio deles.

Alexandre levantou-se.

— Não vai sair livre dessa. — Afastou-se devagar, até a porta. — E se sair livre, vou estar à sua espera — garantiu. — Põe ele atrás das grades.

 

Um mês depois…

O dia amanheceu claro, sem aquela faixa cinza asfixiante. O céu azul denunciava um domingo tranquilo. Ela recostou-se em uma cadeira, uma perna esticada, a outra flexionada com o pé no chão. Olhou para o pessoal perto da área da churrasqueira.

— Quanto tempo vai levar para encontrar outro pedreiro?

Patrícia quase desacreditou da pergunta do parceiro.

— Quer estragar o domingo? Ganhamos um almoço. Gratidão não tem preço. Além do mais, o cara está preso. Não vai sair tão fácil dessa. O julgamento já está marcado. Nós vencemos. E além disso… — Patrícia apontou para Rosana. — Salvamos a moça.

Rosana se recuperava de forma gradual e progressiva. O pai confessou: a moça falava pouco, mas assegurou estar conseguindo vencer o trauma. Depois de ser retirada quase sem vida do cubículo não conseguia ficar muito tempo dentro do quarto ou de qualquer cômodo muito pequeno.

Nogueira segurava o copo de uma mistura qualquer. Passou o tempo todo ao lado de Rosana. Ele a observava, circulava e, depois, retornava para perto. Patrícia desconhecia aquele sofrimento paterno, mas entendia. O homem só tinha a filha.

— Quer ir ao cinema na quinta? — encostou o pé no pé da parceira. O verde do olhar estava mais claro. Tomou a cerveja de um gole só.

— Um filme romântico, dessa vez? — ela perguntou com um meio sorriso e um olhar carregado de doçura.

— Não força, pardalzinho.

Ela alargou o sorriso. Continuou observando as conversas, o céu azul, a água da piscina… E Alexandre foi pegar mais uma cerveja.

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