Os Gigantes – Conto

OS GIGANTES

“A gentle creak and a soft ‘whoosh’ as the sails zip past is all you hear when standing close to a windmill.” ~ A.D.¹

Deitado à sombra dos monstros de madeira, revivia a juventude. Parava o tempo, segurando uma das engrenagens. Simples e fácil. A descoberta rendia grandes feitos, desde dar nós nos varais estendidos ao longo da estrada do fiorde até trocar os pares de sapatos na loja de Martim ou soltar as vacas do velho Olde no pasto para vê-lo correr desengonçado agitando a bengala. Brincadeiras inconsequentes de um garoto esperto e cheio de sardas. Voltava um, dois anos, uma década ou duas, uma vida ou duas. O segredo estava lá, nas pás, nas engrenagens perfeitas, e só ele sabia.

Suas mãos tocavam as estruturas e as fazia girar. Para frente ou para trás nos anos a carregar nas retinas. Voltava para um tempo onde a simplicidade resumia-se a tirar leite, correr ao redor da pequena propriedade e brincar por entre as roupas estendidas no varal de Margie. Pés e pás de vento.

As mãos da velhice, carregadas de manchas se dissipavam e a tez renovava em viço e alvura. Dedos longos e finos a lembrar da agilidade em tocar no teclado, em construir geringonças de madeira para cumprir seu papel de brinquedos em um mundo cada vez mais tecnológico.

O cheiro da cozinha invadia o coração. Os pulmões se enchiam e segurava o ar até não aguentar. Depois, soltava e respirava outra vez. Deixava-se ser tomado por um misto de melancolia e felicidade. A vida era verde, igual ao pasto que crescia do outro lado da cerca. Era também de tulipas, jacintos e roseiras. O inverno, apesar de longos, não ofuscava os verões a zumbir para as flores deixarem seu néctar mais doce.

— Você fez a lição de casa, Olsen? — A mãe conseguia capturá-lo apenas com o olhar. Assim como os pássaros nas gaiolas, sentia suas asas tolhidas do voo vespertino. — Porque não quero reclamações da professora.

— Eu sei, mãe.                                         

— Então, se você sabe, por que pergunta, não é?

— Quero que pergunte sempre, mãe. Para eu me lembrar.

O abraço e o beijo envoltos no perfume do tempo o faziam levitar em uma nostalgia devastadora. Imergia naquele trecho de vida e decorava mais um pedaço da figura materna. Uma ruga a mais no rosto, um calo a mais na palma da mão, porque o trabalho campesino ditava a velocidade da juventude.

Corria para fora, assim que ela retomava os serviços domésticos, e perseguia o vento nas asas das andorinhas. Naquele tempo, ele as distinguia pelo tamanho, pela cor, pelo tipo de voo, de onde vinham e para onde iam depois que o calor acabava em neve. O bando revoava e Olsen abria os braços para alcançá-las mais adiante, pousadas nas estruturas dos moinhos.

– – –

Anne o parou antes de a porta abrir e segurou a maleta, retirando-a com delicadeza de suas mãos. Fitou-o com aqueles olhos enormes e o vinco na testa já dizia tudo.  Deveria explicar-se.

— Onde pensa que está indo, papai?

— Para a vila! Para onde mais? — a resposta desgastada de tantas fugas veio sem hesitação. Olsen só tinha uma direção, mesmo com a mobilidade reduzida, o corpo octogenário e um leve tremor nas mãos, a vila figurava em primeiro lugar nos roteiros de verão.

— Assim, de última hora? Sem avisar?

— Vovô! Vovô! Quero ir também. Me leva pra vila?

As mãos do pequeno o agarraram pelas calças e logo os bracinhos envolviam as pernas com força. Sorriu apesar de saber de antemão a resposta da filha.

— Volte para o quarto, Nic e sem protestar. Você não vai a lugar algum. — Anne largou a maleta e conduziu o pequeno até o corredor, em direção a seu quarto.

Olsen recolheu a maleta do chão e observou a filha, retrato detalhado da mãe, mulher de silhueta esguia, de quadris largos, cabelos caídos no ombro e de fala mansa, porém firme. A esposa, falecida há alguns anos, deixara sua cópia. E não havia um dia sequer de sua partida que não a revivesse através da filha, do gosto do tempero. Legado indiscutível.

— Papai… Uma viagem agora? O verão está se indo, os dias estão frios. Eu não sei como está a velha casa e, além disso, a despensa deve estar vazia.

— Eu ainda sei me virar, querida.

— Eu sei que sabe, mas me preocupa saber que ficará sozinho.  O vizinho mais próximo mora a uns bons 3 ou 4 quilômetros.

— Uma última viagem, querida. Prometo. Uma última ida à vila até a próxima estação. E quem sabe, possamos ir todos juntos no verão que vem, como no ano passado.

E ela faria o quê? Prenderia no quarto?

Dizer que sua vida estava ligada à vila, aos moinhos era falar em vão. Amava seus filhos, como também amava, ainda que levada pela morte, a esposa, doce lembrança de uma paixão. Amava seu trabalho, mas os laços que o prendiam aos gigantes eram feitos de outra matéria. Fantasia, magia, encantamento. De uma força a transpassar o tempo.

– – –

Quando conheceu Petra, deixou o corpo partir com ela, ainda jovem. Caminhou ao seu lado por ruas movimentadas de uma metrópole impregnada do novo. As construções majestosas afrontavam as lembranças da vila. Um dia, quem sabe, a vila se tornaria igualmente grande e agitada, com ruas estreitas, carros e bondes, um sobe e desce para não se sabe onde. O coração, no entanto, permaneceu naquele interior longínquo de Kinderdijk², permeado de nuvens e ventos. O fiorde morava dentro dele, movimentava o sangue, impulsionava a respiração.

O trabalho na livraria do sogro rendeu seus estudos e méritos literários, a cátedra em História da Literatura Holandesa, seus livros e palestras e um currículo invejável. Do outro lado da balança tinha Petra e os filhos ao seu redor. Independência conquistada e merecida.

A cidade grande, porém, deixou de segurá-lo em um sonho, onde os moinhos o chamavam, clamando sua presença. Entendeu que era hora de voltar para perto do início. A contragosto da esposa, tomou o rumo da vila.

Foi nesse tempo, deitado à sombra de uma das pás em um verão morno, que entendeu o mecanismo e o seu lugar dentro do todo. Uma volta mágica, um suave sopro, para retornar a um mundo conhecido apenas por ele. Daquele dia em diante, sempre que o peito ardia e os olhos enxergavam os moinhos, fazia as malas e partia.

—Quanto tempo vai demorar agora? — Escorada na porta em seu vestido de flores azuis, Petra passava o pano de prato na xícara já seca.

— Talvez alguns dias apenas, querida. Uma semana, talvez. Quero ver a casa.  Consertar algumas coisas que ficaram para trás da outra vez.

—‘Da outra vez’ não faz um mês, Olsen.

— Querida… — Largou tudo e abraçou-a afetuosamente como sempre. — O lugar precisa de cuidados. Alguém precisa fazer o serviço. Além do mais, estamos no verão. Vou levar Anna. A vila é tranquila e ela vai poder brincar mais livre. Por que não vem também?

— A livraria não fecha no verão, Olsen. É o período mais movimentado e meu pai e o novo ajudante não dão conta do recado.

Olsen ignorava o pedido implícito de Petra e partia. Voltava com ânimos renovados e saudade arrebatadora, e os meses seguintes, carregado de uma dinâmica intensa, dissipavam a contrariedade passada e impulsionavam não só o casamento, mas os negócios citadinos.

– – –

Olsen olhava para o céu estranhamente cinzento daquele final de verão, depois de tantos e tantos outros. Com dificuldade para distinguir os vultos esvoaçantes do ar, debaixo daquela sombra monstruosa, imaginava, diante da grandeza do trabalho daquelas máquinas, se poderia haver ideia maior ou melhor que conseguisse conter a água. A vila sobrevivia graças aos gigantes. Eles a salvaram da inundação no começo. Sempre a salvavam.

Escutou as pás do moinho se moverem lentamente como na primeira vez, deitado a seus pés.  As andorinhas revoaram. Uma marcha de bater descompassado de asas, denso e caduco.

No fim de tudo, tudo para. As engrenagens, as pás… Até o vento. De uma forte rajada, vai morrendo em brisa. É assim no fim e sempre será. Cada pormenor desaparece. Cada pequeno truque mágico é descoberto. Toda a ilusão é afugentada para longe, guardada nos porões de algum alicerce desgastado. Os sulcos vão se tornando um emaranhado de linhas mais evidentes e, um a um, apontam para as coisas já vividas.

O moinho olhou para ele pelas janelas esbranquiçadas do segundo andar como se o quisessem avisar do momento. As pás foram parando. Ainda deitado, ele fechou os olhos e apurou os ouvidos.  Tocou-as mais uma vez antes de as rodas denteadas guinarem o movimento sobre o carril. As andorinhas passaram rasantes desconstruindo o voo em direções aleatórias.

Nota:

1. Um rangido suave e um delicado “whoosh” quando as velas passam, é tudo o que você ouve quando está perto de um moinho de vento.

2. Kinderdijk é uma ‘avenida’ de moinhos de vento, localizada em Molenwaard. São os primeiros moinhos de vento criados na Holanda.

Deixe um comentário