
Para Lucas, cujo nome nunca ninguém lembrava, não tinha dia de folga. Dia e trabalho eram sinônimos. Todos os dias da semana, todos os meses do ano. Sem férias, nem folgas. Ele vivia todas as horas do dia. Cada minuto, cada segundo de cada dia. Tarefa, não faltava. Era seu pão, sua água. Ele aceitava. Precisava.
E se os afazeres diários eram seu alimento, a solidão, sua sobremesa. Desde criança aprendera a aceitar, gostar e resignar-se com sua sina de órfão. Os supostos irmãos e irmãs, se os tinha, estavam espalhados pelo mundo. Assim imaginava quando queria aliviar-se da dor de não ter qualquer vínculo sanguíneo com quem quer que fosse. Imaginava os pais desejando o melhor para ele, estivessem onde estivessem. Sorria irônico. A quem queria enganar?
O circo e aquele pessoal que lá vivia constituíam sua família. A que ele conhecia. A que ele respeitava. Querendo ou não, gostando ou não do que o destino lhe reservara, acolhera o circo como sendo seu, depois de muitas tentativas de encontrar a verdadeira referência.
Acordar no escuro, madrugada ainda, vestir-se e seguir para a lida? Sabia fazer de cor. Dar comida para os animais, limpar as carroças, organizar o material das apresentações, montar os palcos, puxar e esticar lonas, cordas, dar nós. Não havia escolha. Tudo era trabalho. E Lucas não resmungava. Haveria alguma recompensa por tudo aquilo. Por certo, algum dia, ele receberia valor em dinheiro e reconhecimento.
Gostava de tratar os animais, conviver com os colegas de profissão, aplicava-se nos afazeres além do treinamento, naquele varrer de terra que deixava as narinas impregnadas do cheiro de pó, de umidade, de mofo. Naquilo resumia-se a vida e o que ele realmente aprendera e sabia fazer.
O trapézio, dentro daquele universo de choro e riso, de falsa alegria e mágica traiçoeira e medíocre, se tornava a quase grande, definitiva e única paixão, não fossem os cavalos e a doce e inesquecível Isabela, por quem caía de amores e encantos. Isabela que raiava o dia, que fazia brotar suspiros inesperados, que conquistava seu coração cada vez mais desde sempre.
— Dê comida para os cavalos, Toco!
Acorde para o mundo! O apelido que lhe deram quando pequeno matara seu nome real. Ninguém mais lhe chamava de Lucas, a não ser Isabela, que chamava a todos pelo nome, como se os apelidos desmerecessem o sujeito que os vestia.
— Chame o veterinário. Erina não está bem ― O adestrador passava apressado como sempre, carregando papéis.
— Ele não entende nada dessa égua. Não entende nada de coisa alguma – parou na descida do trailer olhando para Mário.
— Você não é pago para pensar! – gritou já se afastando – Apenas faça!
Se o dia pudesse ter mais de vinte e quatro horas, por certo não conseguiria contentar-se. Também não daria conta de fazer tudo o que lhe solicitavam.
Vez ou outra, Lucas se sentava quieto perto do picadeiro e olhava para o topo da tolda, onde o ponto de luz se apresentava mínimo, admirando o contraste do claro com o escuro. Olhava para cima e imaginava-se subindo, como se trilhasse um túnel, indo em direção do infinito. Depois, olhava para o trapézio imóvel, no meio daquela lona, e desejava o impossível. Desejava a perfeição. Desejava o brilho de suas piruetas, o esmero de cada movimento, o requinte da sincronia. No trapézio, ele dançava com o ar.
— Pronto para treinar?
A voz de Janius, grave e firme, tirava-o do devaneio. O homem, mais velho que ele em duas décadas, esperava sempre o máximo de seus aprendizes. Apesar de Lucas já estar trabalhando no trapézio há mais de três anos, Janius tinha uma vida inteira de experiência naquele instrumento. As rugas não mentiam. Estava a um passo de uma aposentadoria, muito embora não admitisse.
— Preciso chamar o veterinário. Erina não está bem.
— Então, não demora. Quero treinar um pouco mais o número novo. Não senti firmeza na última vez – olhou de soslaio – Senão, vai tomar meu lugar mais cedo do que imagino?
— Ninguém tomará seu lugar, Janius.
O homem deu de ombros e continuou seu discurso.
— Não pensaria assim se Cortazur estivesse querendo apertar seu pescoço até lhe faltar todo o ar. O desgraçado vai me dispensar por causa de um boato. E você sabe muito bem do que estou falando.
Lucas meneou a cabeça. Janius era exagerado por natureza. Raimundo Cortazur não dispensaria seu melhor trapezista nem por um boato.
— Eu vou fazer tudo certo. Tudo como me ensinou.
— É o que eu espero, para compensar o ‘crédito’ desmerecido. Afinal, não estou dormindo com ninguém.
A manhã passava sempre rapidamente. As horas eram preenchidas com afazeres que, muitas vezes, não estavam programados. O circo exigia jogo de cintura. A surpresa se fazia presente de forma constante.
O momento do almoço possuía igual velocidade. A comida que a barbada Mariana fazia, abria o sorriso de qualquer um. Além do mais, a fome vinha com as tarefas mais pesadas.
O treinamento acontecia na parte da tarde. A noite era para o espetáculo. Todos sabiam. Estava no olhar de cada um a ansiedade que o passar das poucas horas antecedendo a noite trazia consigo.
— Por que demorou? — Calysta ajeitou o elástico em seus pulsos e ajeitou a malha que ressaltava a silhueta esguia. Tinha os cabelos lisos acastanhados em um arranjo que os prendiam em trança solta na parte de trás.
— Eu não faço apenas isso, se já não se deu por conta.
— O que foi? Está de mau humor? Dormiu mal? Trabalhou demais?
Ele não deu resposta àquele sotaque portenho. Sentou-se para trocar o calçado.
— Você está assim porque Cortazur dispensará Janius? — ela gostava de provocá-lo. Fazia de propósito.
— Ele vai?
Houve um momento em que aquilo pareceu mesmo uma acusação. Seu mundinho estava sendo atormentado por mais um membro da trupe.
— Ele vai. Você vai tomar o lugar dele quando Costazur descobrir sobre o romance – e, em tom de voz jocoso, completou – Um toco no topo do circo.
— Não comece com as provocações, Caly!
Ela sorriu marota. Sabia muito bem como aborrecê-lo.
— Só espero que você seja um pouco mais inteligente que Janius e não dê margem para desconfiarem de você também. A menos que esteja realmente comendo a mulher do patrão.
— Por que não cala a sua boca? – sussurrou.
— Porque é exatamente por isso que Janius vai embora.
Não tinha o que argumentar com Calysta. Se o fizesse, a discussão iria longe. E não terminaria bem.
— Vejo você lá em cima, toquinho!
Lucas deixou a imagem de Calysta para dar atenção a Janius, Mauro e Vera, que já estavam lá no alto, de um lado para o outro, balançando-se. Ficava atento ao mais experiente porque era preciso muito exercício, mas a observação e cuidado faziam toda a diferença. Na apresentação, Mauro e Vera dividiam as atenções do público. Eram os mais ágeis e os que se arriscavam nas manobras mais perigosas. Contudo, Janius e ele seguravam o casal no final ou faziam a ponte para o segundo balanço.
Além dos cavalos adestrados, o número com Os Trapezistas Alados, lotava as arquibancadas da grande lona. Raimundo Cortazur tinha, no trapézio, o número mais importante de seu empreendimento.
Apesar de jovem, Lucas sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria o centro das atenções. Era assim que fazia as acrobacias, pensando no dia em que se movimentaria tão rápido que se abririam asas de suas costas e o picadeiro seria pequeno para tão épico voo.
— Pare de sonhar, Toco, e suba aqui! – Janius parecia irritado.
Enquanto subia a escada de corda, notou Isabela, ajeitando-se na arquibancada para assistir ao treinamento.
Sorriu de forma contida. Por ela, faria qualquer coisa.
Não parou de subir e não demorou a estar lá, junto dos outros quatro.
Também não demorou a perceber os erros do mais velho depois de começar. Calysta reclamou por primeiro, quando não sentiu segurança para saltar para o outro trapézio, tendo que balançar-se ainda mais e ganhar maior velocidade. Depois foi Mauro, ao agarrar-se desajeitado e, por fim, Vera, ao caiu na rede quando Janius a largou.
— O que há de errado com você?
Mauro ergueu sua voz mais do que o normal. Ele, que nunca reclamava e sempre se posicionava de forma neutra, demonstrava preocupação com o treinamento.
— Não há nada errado comigo! Foi uma distração. Só isso.
— Não pode haver distração hoje à noite. Você mesmo diz – Calysta esfregava as mãos de puro nervosismo. – Além do mais, o número novo e essa ideia de eliminar a rede não deixa margem para erro, não é mesmo?
— Não há nada de errado comigo! E o número, sem a rede, é possível de realizar.
— Não tem nada de engraçado num número sem a rede – Vera reclamou, olhando para Mauro.
Lucas, quieto, observou a discussão.
— Vocês não estarão no último número – tratou de enfatizar. – O Toco e eu faremos tudo acontecer. Nós somos as estrelas. Nós é que faremos esse circo estarrecer. Somos nós que faremos os aplausos calarem todos os sons da noite.
O grupo entreolhou-se e ninguém pronunciou qualquer outro comentário. Os ensaios seguintes aconteceram sem deslize.
Do treino para a hora da apresentação, Lucas contou os minutos. O tempo, veloz como sempre, não lhe deixou senão um quarto de hora para encontrar-se com Isabela que treinava seu número com os cavalos. Mário estava nervoso. A égua não tinha melhorado em nada. Haveria um corcel a menos naquele picadeiro.
Daquele momento até o número com o trapézio ele ajudou os palhaços, organizou o material dos malabaristas, juntou as bugigangas do mágico. Correu de um lado para o outro.
Quando finalmente parou, depois de trocar-se de roupa, estava diante do trapézio. A rede, lá embaixo. Vera e Calysta ao lado de Mauro, na plataforma do outro mastro. E Janius ao seu lado, esperando para que fossem anunciados.
— Ele acredita que eu esteja saindo com a mulher dele – sinalizou com o olhar, fazendo Lucas olhar para baixo e ver Costazur. – Mas nós sabemos que não é isso que acontece, não é?
Por um instante, quando os olhares se cruzaram, Lucas sentiu-se comido pela culpa e medo. Seu estômago apertou e a saliva voltou salgada.
— Mas você tem razão — Janius continuou. — Ninguém tomará meu lugar. Ele não vai conseguir mandar-me embora. Somos uma grande família aqui e esse espetáculo é o melhor que temos.
Foi a última coisa que ouviu de Janius.
Costazur anunciou o grupo do trapézio. Um por um, iluminados pelos holofotes.
Janius balançou-se e saltou para o trapézio central num voo perfeito. Sentou-se nele, ajeitando-se. Saudou o público.
As acrobacias foram realizadas com extrema precisão. Todos se maravilharam delas. E o momento final, a última proeza, finalmente em destaque. Era hora de terminarem aquele show. Os tambores rufaram, cadenciando o toque mais uma vez.
O público se surpreendeu quando o homem de fraque multicolorido e brilhante anunciou a façanha ressaltando a periculosidade. Tudo o que ele sabia fazer realmente, segundo Lucas: apresentar o Circo Costazur.
O barulho do amontoado de gente deixou de existir. Os palhaços reuniram-se próximos da cortina vermelha para espiar. A malabarista sentou-se num banquinho.
Na tolda escura, as estrelas prateadas reluziam.
A rede foi retirada.
Da plataforma, Lucas sentiu as mãos suadas. Procurou pela figura de Isabela. De pé, ela assistiria às manobras aéreas como sempre fazia ao lado de Costazur.
Janius balançou-se intensamente.
Segurando-se firme com as mãos, Lucas saltou da plataforma e movimentou-se como um pêndulo. O mundo tinha outra dimensão.
Eles trocaram de lugar.
Um momento apenas bastou para que percebesse o óbvio. Janius diria a verdade para Costazur. Ele não vai conseguir mandar-me embora. Num instante antes do salto, pressentiu o pior. Os olhos do colega tinham um brilho diferente. Somos uma grande família aqui. Sim. Janius, Calysta, Mauro e Vera.
As mãos de Lucas encontraram os braços de Janius e não fizeram força para segurá-los. Janius tentou agarrar-se cravando as unhas em seus pulsos enquanto escorregava, sentindo o deslocamento mortal do movimento do trapézio. O público levantou-se horrorizado. O balanço fez o corpo cair perto da mureta circular. Quem estava por ali, pôde ouvir o quebrar de algo. A luz vinda de cima da tolda iluminou Janius. As estrelas prateadas brilhavam ainda mais intensas sobre a malha colorida. Lucas escutou Isabela gritar por ajuda e deixou-se ficar no trapézio central sentindo o balanço diminuir aos poucos até parar.